Regulação digital não pode ficar restrita a aspecto econômico
Por Editorial / O GLOBO
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhou ao Congresso um Projeto de Lei que reforça os poderes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), para que possa supervisionar a atividade das grandes plataformas digitais. O objetivo declarado pelo Executivo é garantir a concorrência num setor da economia que tende a concentrar-se à medida que a tecnologia evolui.
O projeto amplia as atribuições do Cade criando uma Superintendência de Mercados Digitais (SMD), responsável por monitorar o setor. A SMD definirá as obrigações das plataformas, e o Cade estará aberto a reclamações. O foco da legislação são as corporações com faturamento anual acima de R$ 5 bilhões no país e de R$ 50 bilhões no mundo. Estão enquadradas nesse critério empresas como Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp), Alphabet (dona de Google e YouTube), TikTok, Apple, Microsoft, Mercado Livre ou iFood.
É uma iniciativa bem-vinda, sobretudo levando em conta os diversos processos a que as plataformas digitais têm sido submetidas mundo afora, com base em leis antitruste. O Google já foi condenado por abuso de monopólio em seu serviço de busca nos Estados Unidos e ainda enfrenta outra ação ligada a seu sistema de anúncios. A Comissão Federal de Comércio (FTC) americana também processa a Amazon, acusada de manter usuários presos ao sistema Prime e de favorecer vendedores que usam sua rede logística. A Comissão Europeia já obrigou o Google a pagar quase € 10 bilhões em multas em quatro casos. Também multou a Apple em € 1,84 bilhão, em razão de queixa aberta pelo Spotify (a Apple aguarda recurso). Na Austrália, tanto Google quanto Apple enfrentam processos em razão das taxas cobradas nas lojas de aplicativos para celular.
O Brasil, portanto, não inova ao tentar disciplinar a concorrência no universo digital. Seria oportuno, contudo, que o governo não negligenciasse os demais aspectos da regulação. Depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, as plataformas passaram a ser corresponsáveis pelo conteúdo que veiculam em situações específicas. A regra criada pelo Supremo representou um avanço, mas também despertou dúvidas. O ideal seria a Câmara voltar a examinar o Projeto de Lei das Redes Sociais, aprovado pelo Senado em 2020.
É necessário retomar essa discussão à luz dos progressos ocorridos durante os últimos cinco anos. As plataformas tornaram-se ainda mais poderosas com o advento das ferramentas de inteligência artificial. Os riscos para os usuários também cresceram, como demonstram denúncias recentes de abusos contra crianças que ganharam o noticiário. As redes continuam a ser usadas para todo tipo de finalidade criminosa sem que assumam responsabilidades compatíveis. É certo que, sob Donald Trump, a Casa Branca tem feito pressão para retaliar países que tentem impor alguma disciplina ao meio digital. Mas isso em nada muda a necessidade urgente da sociedade. A proteção contra os abusos digitais não pode se restringir ao campo econômico.