Os riscos do ‘SUS da Educação’
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
A Câmara dos Deputados aprovou o Sistema Nacional de Educação (SNE). Em tese, a ideia do chamado “SUS da Educação” soa sedutora: integrar União, Estados e municípios em torno de objetivos comuns, fortalecer a cooperação federativa e criar uma base de dados capaz de acompanhar a trajetória dos estudantes. No papel, parece um marco institucional. Na prática, o risco é reeditar uma velha armadilha brasileira: multiplicar conselhos, instâncias e regulamentos com novos custos e nenhum ganho de aprendizagem.
Não faltam exemplos de como a educação no Brasil prosperou sem a necessidade de “sistemas nacionais” tentaculares. Sobral, no Ceará, tornou-se referência mundial em alfabetização porque lideranças locais assumiram riscos, inovaram e implantaram práticas comprovadas. Regimes federalistas – dos EUA à Alemanha, do Canadá à Austrália – exibem resultados sem um sistema centralizado que submeta escolas e secretarias.
A comparação com o Sistema Único de Saúde (SUS) é inadequada. Na saúde, faz sentido padronizar protocolos e compartilhar prontuários: a vida de um paciente depende de que informações fluam entre hospitais e níveis de governo. Já na educação, cada rede é responsável por gerir suas escolas, contratar professores, definir estratégias. A interdependência operacional não existe. Um “MEC do B”, como alertam alguns críticos, pode gerar só mais burocracia e confusão.
A redação da Câmara mitigou riscos, tornando as diretrizes orientativas e privilegiando a autonomia federativa. Mas, se a versão original for restaurada no Senado, as comissões nacionais poderiam impor obrigações a Estados e municípios, condicionando transferências ao cumprimento de regras definidas por um punhado de tecnocratas, sindicatos e ONGs, em detrimento dos gestores eleitos. Isso abriria brecha a corporativismo, insegurança jurídica e diluição de responsabilidades.
Outro ponto delicado é o chamado Custo Aluno-Qualidade (CAQ). Em tese, trata-se de estabelecer quanto o Estado deve investir por estudante para garantir padrões mínimos de qualidade. Na prática, corre-se o risco de transformar uma aspiração legítima em obrigação contábil impossível de cumprir. Sem consenso técnico sobre quais insumos considerar e sem lastro fiscal, o CAQ pode virar “letra morta” ou, pior, multiplicar disputas judiciais sobre recursos inexistentes.
Não se trata de negar que a educação brasileira carece de coordenação. O País gasta tanto quanto ou mais que muitos vizinhos, mas segue patinando na zona de rebaixamento dos rankings internacionais. O problema é como usar melhor o dinheiro já disponível, não fabricar novas engrenagens. Incentivos inteligentes funcionam melhor do que padronizações impostas. Experiências internacionais indicam que currículos claros, sistemas de avaliação robustos e políticas de valorização docente são mais eficazes do que multiplicar instâncias colegiadas.
O Brasil precisa de políticas simples e factíveis: atrair jovens talentos para o magistério, formar melhor seus professores, premiar boas práticas e reforçar a autonomia dos gestores locais. O governo federal tem um papel – na avaliação, no financiamento complementar, na compensação das desigualdades. Mas é ilusório imaginar que conselhos em Brasília resolverão problemas que nascem na sala de aula.
O Senado deveria manter o caráter orientativo introduzido pela Câmara. Tornar obrigatórias as diretrizes do novo sistema significaria engessar ainda mais uma máquina já emperrada, sob o risco de desviar o foco do que realmente importa: letramento de qualidade, aprendizado consistente em matemática e ciências, gestão eficiente e professores motivados.
Um banco nacional de dados pode, sim, ser útil para identificar gargalos e compartilhar boas práticas. A criação de instâncias de diálogo entre entes federados – desde que sirva para cooperação voluntária, e não para coerção centralizada – também pode ter valor. Mas, se o SNE consumar a “obra-prima do barroco tecnocrático”, como advertiu neste jornal o especialista em educação Claudio de Moura Castro, terá cumprido apenas a sina de tantas outras reformas educacionais no Brasil: grandes promessas, poucos resultados.