Insistência de Lula em alternativas ao dólar é inexplicável
Por Editorial / O GLOBO
A insistência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em defender o uso de moedas alternativas ao dólar nas trocas comerciais demonstra não apenas desconhecimento sobre o funcionamento da economia global. Traduz também uma leitura equivocada da conjuntura internacional e expõe sua inépcia na defesa do interesse brasileiro. Depois do encerramento da cúpula do Brics no Rio de Janeiro em julho, Lula foi questionado sobre a criação de uma plataforma de investimentos nas moedas locais dos integrantes do bloco. Na resposta, disse que o mundo precisava “encontrar um jeito de que a nossa relação comercial não precise passar pelo dólar”.
De lá para cá, não tem perdido a oportunidade de voltar ao tema. Como lembrou em entrevista à GloboNews o analista Vitelio Brustolin, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Harvard, nem mesmo Dilma Rousseff, presidente do banco do Brics, o NDB, defende a substituição do dólar como base do comércio mundial. China, Índia e Rússia tampouco têm falado tanto no tema quanto Lula. Até agora, o único resultado de sua investida foi enfurecer Donald Trump.
O uso do dólar no comércio global é incontornável. Numa ponta ou na outra, ele está presente em nove de dez transações em moeda estrangeira. Cerca de 60% das reservas internacionais são cotadas em dólar. Só a China, segunda economia do mundo e a maior do Brics, detém o equivalente a US$ 2 trilhões, segundo estimativas de Ken Rogoff, autor do recém-lançado “Our dollar, your problem” (“Nosso dólar, problema seu”). Quando a maioria dos bancos centrais analisa efeitos externos na trajetória da inflação dos seus respectivos mercados domésticos, os olhos estão na moeda americana. Os preços de commodities, como petróleo ou soja, são cotados em dólar. Dívidas externas de países e corporações, também. As bases de sustentação dessa preferência são a liquidez e a confiança no respeito à propriedade.
É certo que o predomínio do dólar pode não ser eterno. Por algumas medidas, seu uso está em declínio desde 2015. Depois da invasão da Ucrânia, Estados Unidos e países europeus congelaram as reservas da Rússia no exterior (cerca de US$ 330 bilhões) e passaram a usá-las como base para empréstimos aos ucranianos. O confisco reforçou o temor dos chineses de serem alvo no futuro de manobra parecida. Outro sinal preocupante foi a decisão arbitrária de Trump enquadrando o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes nas sanções previstas na Lei Magnitsky, que proíbe operações no sistema financeiro americano.
Mas diminuir a dependência do dólar no comércio é agenda de russos e chineses, não brasileira. Para reforçar o argumento em favor do uso de moedas locais, Lula cita o exemplo do comércio com a Argentina. Esquece que mais de 90% das transações do Mercosul são feitas em dólar. Afinal, que brasileiro guarda dinheiro em pesos argentinos?
Difícil é entender por que Lula se tornou o porta-voz incansável dessa ideia, enquanto os líderes chinês e russo têm sido menos eloquentes. Se a insistência nessa pauta com um sabor de ação coordenada do Brics era uma tática para melhorar a situação do Brasil diante do tarifaço, já está claro que não funcionou.
Cada país tem negociado com suas próprias forças. Lula deveria era adotar uma estratégia mais eficaz para mitigar o efeito das tarifas.