Enchentes e deslizamentos causam danos e afetam 21 mil pessoas em áreas de risco em Caucaia; ‘acordei com tudo boiando’
“Se na Aldeota entra água, imagine aqui.” A frase poderia ter, mas já até perdeu o possível tom de ironia: é conformada. O sentimento afoga a comunidade espremida em uma vila no bairro Tabapuá, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), um dos diversos pontos da cidade com problemas crônicos evidenciados pelas fortes chuvas do início do ano.
A prefeitura decretou situação de emergência, na última terça-feira (11), uma semana após o Rio Ceará transbordar e causar inundações e deslizamentos de terra no município. O decreto foi publicado no Diário Oficial, vale por 6 meses e registra que 7.900 foram afetadas pelos desastres e estão em áreas de risco.
Em entrevista ao Diário do Nordeste na manhã desta sexta-feira (14), durante a 5ª Conferência Estadual do Meio Ambiente do Ceará, porém, o prefeito da cidade, Naumi Amorim, informou que já são cerca de 21 mil pessoas impactadas, em diversos bairros e no “interior” de Caucaia. Ele estimou ainda que o município precisa construir mais de 100 passagens molhadas para facilitar os deslocamentos.
Na manhã de quarta-feira (12), quando choveu apenas 18 milímetros, a via de acesso à Rua Um K (conhecida como Vila da Cagece) estava totalmente alagada. Na semana anterior, a água chegou a subir cerca de um metro – informação confirmada pelas marcas nas paredes das casas e por vídeos gravados pela população.
“Tava dormindo com meus filhos de 1 e 9 anos e acordei com as costas da gente molhadas, com tudo boiando”, relata Emanoela de Lima, 32, ao mostrar o colchão ensopado no quarto úmido, com o ar pesado de mofo. “Minha geladeira tá ligada porque preciso, mas tá dando choque”, confessa.
O relato dela se encontra com os dos vizinhos: “toda chuva que dá é isso, mesmo que nem seja tão forte”. Emanoela mora com o pai, que já vive por lá há 40 dos 67 anos de vida. Marceneiro, Francisco Carlos hoje assiste aos móveis da própria casa se desmancharem “sem poder fazer nada, só olhar”.
“Essas enchentes são mais na madrugada. A gente procura abrigo na casa de familiar com as crianças e depois volta pra limpar. É assim”, conforma-se Emanoela. Na porta de casa, durante a nossa entrevista, o pai solta: “tá fazendo um vento frio, já... Esse tanto de vento a gente já fica nervoso e cabreiro. É vento de chuva.”
Na vila estreita, “a água bate no meio do muro”, como afirma Josiana Belarmino, vizinha de Emanoela. “Todo ano as pessoas perdem as coisas todas dentro de casa. Aqui a gente sofre”, diz. Para prevenir o problema, a mulher “aterrou” a casa, ou seja, subiu o nível do alicerce – não adiantou.
A enfermeira Silvia Galdino, 40, mora na “Vila da Cagece” há 21 anos, e reconhece que as famílias “tiram de onde não têm pra fazer obra e evitar esse sofrimento”. “Mas conto nos dedos as casas que são aterradas. E, mesmo assim, a gente passa com a água na cintura. É um sofrimento que só um cego não consegue entender”, dispara.
“Tem pessoas que se acham no direito de julgar, perguntam por que a gente continua aqui. Infelizmente é a nossa realidade. A gente não mora aqui por opção, são as condições que a gente tem.”
No decreto publicado no DOM de Caucaia, assinado pelo prefeito Naumi Amorim, a gestão cita “o baixo senso de percepção de risco das comunidades locais” como agravante para “a qualidade de vida da população, gerando clima de tensão social”.
A cerca de 8 km dali, no bairro Conjunto Metropolitano, conhecido como Picuí, as enchentes não foram como as já esperadas todos os anos. “Dessa vez foi bem mais forte”, relata Gabriele Luzia, 25. “De repente, a água subiu. Foi muito rápido, de uma vez”, relembra.
A casa da jovem fica bem acima do nível da rua, erguida por um batente alto. Ainda assim, a lama escalou cerca de 40 cm parede acima. Ao sair de casa com a filha recém-nascida para se abrigar na casa da sogra, ela e o marido mergulharam o corpo até a altura do peito.
“Peguei o que dava pra pegar da bebê, e meu vizinho veio pra tentar ajudar a gente a salvar algumas coisas. Salvamos a geladeira e a máquina, mas os guarda-roupas, berço, perdemos tudo”, contabiliza. O material de trabalho como manicure também foi levado pela água.
No Picuí, parte da comunidade precisou sair de casa e se abrigar em uma escola municipal. Quando visitamos o bairro, as residências já estavam novamente ocupadas. “Todos os anos é o mesmo sofrimento, as pessoas já correm pra escola, que é o ponto de apoio”, descreve Nilce Costa, 52, moradora do bairro há 23.
“Eu não precisei ir, fui pra minha sogra. De repente começou a encher, encher, encher de uma hora pra outra. Muita gente perdeu tudo. Eu consegui salvar uma coisa ou outra, mas o resto… Minha casa é em cima e embaixo, e a água subiu 5 degraus”, diz.
“A gente já fica assustada. Quando chove de madrugada, todo mundo fica acordado, com medo de a enchente vir e pegar as pessoas de surpresa.”
Lama invadiu casas
Mais 16 km distante dali, no Icaraí, as chuvas causaram outro tipo de desastre: um deslizamento de terra. As mesmas precipitações do dia 4 de março, terça-feira de carnaval, abriram uma cratera na rua Raimundo Mendes de Carvalho, onde a lama invadiu diversas casas. Uma semana depois, as residências ainda estão desocupadas.
Em uma delas, visivelmente a mais afetada, a lama derrubou o muro e preencheu o local quase até o teto. Enquanto um trator trabalhava na recuperação da via, que ficou totalmente intrafegável, nenhum morador das construções afetadas apareceu.
As casas mais afastadas da avenida principal do Icaraí, que ficam abaixo do nível do mar, são o destino certo da lama que despenca pelas ruas de calçamento em dia de chuva forte, como testemunha Edvaldo Pereira, 49, morador de uma via paralela à Raimundo Mendes.
“Invadiu minha casa três vezes, já. Eu fiz um muro pra tentar impedir, mas ano passado a terra desceu desse mesmo jeito aí. Botamos tábuas e enchemos de areia pra não derrubar o muro. Toda vida que chove com força é assim”, relata.
Antes de construir o muro de contenção, Edvaldo afirma que “perdia tudo”. “Uma vez acordei de madrugada com o lamaçal: quando corremos, a água tava entrando com tudo. No meu vizinho, o muro dele já caiu três vezes.”
O homem afirma que chegou a morar na via onde a cratera se abriu, mas se mudou para a paralela na tentativa de escapar “do aguaceiro que desce”. Na região, nenhuma rua é pavimentada com asfalto.
Em uma delas, visivelmente a mais afetada, a lama derrubou o muro e preencheu o local quase até o teto. Enquanto um trator trabalhava na recuperação da via, que ficou totalmente intrafegável, nenhum morador das construções afetadas apareceu.
As casas mais afastadas da avenida principal do Icaraí, que ficam abaixo do nível do mar, são o destino certo da lama que despenca pelas ruas de calçamento em dia de chuva forte, como testemunha Edvaldo Pereira, 49, morador de uma via paralela à Raimundo Mendes.
“Invadiu minha casa três vezes, já. Eu fiz um muro pra tentar impedir, mas ano passado a terra desceu desse mesmo jeito aí. Botamos tábuas e enchemos de areia pra não derrubar o muro. Toda vida que chove com força é assim”, relata.
Antes de construir o muro de contenção, Edvaldo afirma que “perdia tudo”. “Uma vez acordei de madrugada com o lamaçal: quando corremos, a água tava entrando com tudo. No meu vizinho, o muro dele já caiu três vezes.”
O homem afirma que chegou a morar na via onde a cratera se abriu, mas se mudou para a paralela na tentativa de escapar “do aguaceiro que desce”. Na região, nenhuma rua é pavimentada com asfalto.