Alvo nas redes, Lula repete histórico de gafes de primeiros mandatos e vê repercussão negativa das falas aumentar
Por Rafaela Gama — Rio de Janeiro / O GLOBO
Conhecido pela facilidade ao falar de improviso e de transformar discursos de assimilação simples em capital político, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou a ver, neste terceiro mandato, a própria retórica alimentar a oposição e render críticas até entre simpatizantes. Embora deslizes verbais já tivessem ocasionado dores de cabeça pontuais no passado, especialistas avaliam que as declarações atuais — algumas de viés machista ou racista, por exemplo — refletem a dificuldade do petista em se adaptar a um mundo “mais exigente” sobre esses temas e no qual informações repercutem mais intensamente graças às redes sociais. Além disso, Lula ainda se depara com rivais à direita preparados para explorar seus erros à exaustão na arena digital.
O episódio mais recente se deu na última semana, quando o chefe do Executivo destacou, diante de parlamentares, ter escolhido “uma mulher bonita” para comandar a Secretaria de Relações Institucionais (SRI) — em referência a Gleisi Hoffmann (PT). De acordo com dados da consultoria Bites, o caso gerou a segunda maior reação negativa ao presidente nas redes, superado apenas pela comparação feita pelo petista dos ataques israelenses à Faixa de Gaza ao Holocausto, em fevereiro do ano passado. Os dados foram obtidos pela coluna de Lauro Jardim, do GLOBO.
Nas plataformas da Meta (Instagram, Facebook e Threads), a fala mobilizou mais de 3.300 comentários nas horas seguintes, que associaram o presidente a termos como “absurdo” e “vergonha”, aponta relatório da consultoria GoBuzz para o GLOBO. “A frase desagrada não apenas mulheres e defensores da igualdade de gênero, mas também dá munição aos adversários, que relembram episódios polêmicos do passado para desgastar ainda mais sua imagem”, destaca a análise.
O levantamento esmiuçou 5,9 milhões de conteúdos das mesmas redes postados nos últimos 365 dias tratando de declarações de Lula, apontando as ocasiões com maior impacto negativo para o petista. A lista inclui a menção a Gleisi e também outros momentos de cunho sexista, como quando disse que “homens são mais apaixonados pela amante”, em janeiro. Com a popularidade em queda nas pesquisas, um dos segmentos nos quais a aprovação ao presidente mais recuou este ano foi justamente junto a mulheres.
Entre os momentos mais críticos para Lula, surge ainda uma declaração sobre a escravidão, descrita em março de 2024 como “uma coisa boa” por gerar “miscigenação”. Um mês antes, ele já havia afirmado, ao lado de uma jovem negra no palco de evento, que “afrodescendente assim gosta de um batuque de tambor”.
'Submissa porque gosta'
Mas as patinadas não se restringem a pautas identitárias. Também estão entre as declarações de repercussão digital mais desfavorável a sugestão de que a população deixasse de comprar produtos caros para conter a inflação, em fevereiro, e uma fala sobre o “padrão de vida que não tem na Europa” supostamente exibido pela classe média brasileira — essa ainda da pré-campanha à Presidência, em 2022, mas até hoje explorada.
— Com as redes, esses conteúdos não morrem. A frase mal colocada fica se reciclando. E, a cada episódio, há uma reoxigenação e associação a novas situações, fortalecendo argumentos contrários ao governo — explica Rafael Bergamo, diretor da GoBuzz.
Apesar da guinada recente, a trajetória política de Lula guarda outras passagens delicadas. Em 2000, dois anos antes de vencer a primeira disputa pela Presidência, ele protagonizou uma cena que acabaria explorada por rivais do PT na eleição municipal de Pelotas (RS). Ao arrumar a gravata do então prefeito, Fernando Marroni (PT), o petista foi flagrado dizendo que a cidade seria “um polo exportador de viados”.
Uma década depois, já no segundo mandato, o presidente discursou que “uma mulher não pode ser submissa ao homem por causa de comida”, mas sim “porque gosta dele”. Seis anos mais tarde, escutas tornadas públicas pelo ex-juiz da Lava-Jato e hoje senador Sergio Moro mostraram Lula questionando onde estariam “as mulheres de 'grelo' duro do PT”. Embora tais episódios tenham alcançado um certo nível de repercussão, especialistas destacam que o dano, nos tempos modernos, é maior.
— Antes não se falava em politicamente correto. As falas rodavam mais entre paredes, só ganhava tração se ocorria diante do microfone. E hoje, com celulares e redes, ele está sempre ligado. O mundo fica mais exigente sobre o que é dito — diz o professor do Insper e cientista político Carlos Melo. Já Christhian Lynch, também cientista político e professor da Uerj, destaca a “força da inércia” dos 80 anos de Lula: — Para ele, há dificuldade de se acomodar a essa mudança de pensamento, mas também dúvidas sobre valer a pena investir nessas pautas.
Após a fala sobre Gleisi, a oposição bolsonarista iniciou uma ofensiva imediata nas redes. A deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) destacou o “ataque com uma fala misógina dias após o Dia Internacional da Mulher”. Já seu colega de Câmara Nikolas Ferreira (PL-MG) afirmou que “faltaria pano para as feministas”, em referência à defesa que aliadas fariam do governo. A própria ministra argumentou que o correligionário é o líder que “mais empoderou mulheres”.
— Existe uma direita mais experiente para lidar com esse cenário. No ambiente digital, além de radicalizar a discussão, eles se opõem e expõem Lula com muito mais intensidade do que no passado, quando a briga era com o PSDB — reforça Rafael Cortez, cientista político e professor do IDP.
Verborragia presidencial
A partir da análise de 5,9 milhões de comentários, a consultoria GoBuzz apontou as oito falas de Lula mais exploradas negativamente nas redes ao longo de um ano. Na lista, há tanto declarações recentes quanto mais antigas, mas que seguem sendo recuperadas por críticos do petista.
- "Coloquei essa mulher bonita para ser ministra (...). Não quero mais ter distância de vocês." — 12 de março de 2024, durante evento no Planalto com a presença de parlamentares. Fala considerada sexista por sugerir que a aparência de Gleisi Hoffmann foi determinante para sua nomeação.
- "Não adianta o Trump ficar gritando de lá, porque eu aprendi a não ter medo de cara feia." — 11 de março de 2025, durante cerimônia de inauguração em Minas. Declaração direcionada ao presidente dos EUA foi recebida como um desafio direto a outra nação.
- "Se tal produto está caro, você não compra." — 6 de fevereiro de 2025, em entrevista a rádios da Bahia. Sugestão foi interpretada como insensível ao desafio dos brasileiros diante da alta nos preços dos alimentos.
- "Eu sou um amante da democracia (...) porque, na maioria das vezes, os homens são mais apaixonados pela amante do que pelas mulheres." — 8 de janeiro de 2025, em ato que lembrava os ataques de 8 de janeiro. Metáfora foi tida como inadequada e machista, aponta a consultoria.
- "Depois de jogo de futebol, aumenta a violência contra a mulher. Inacreditável. Se o cara é corinthiano, tudo bem." — 16 de julho de 2024, durante reunião no Palácio do Planalto. O comentário foi recebido como uma relativização da violência de gênero.
- "Toda desgraça que isso (a escravidão) causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação." — 14 de março de 2024, ao visitar reserva indígena em Roraima. Foi interpretado como uma minimização dos horrores da escravidão, gerando críticas de movimentos negros.
- "O que está acontecendo na Faixa de Gaza (...) só existiu quando Hitler resolveu matar os judeus." — 18 de fevereiro de 2024, durante a Cúpula da União Africana, na Etiópia. A comparação com o Holocausto foi considerada antissemita por muitos, incluindo autoridades israelenses.
- "A classe média ostenta um padrão de vida que não tem na Europa." — 6 de abril de 2022, em entrevista à Folha de S. Paulo. Fala, ainda da pré-campanha, foi vista como desconectada da realidade econômica do país, indica a GoBuzz.
Histórico de controvérsias
- "Pelotas é cidade polo, exportadora de viado." — Dita em conversa privada a político da cidade no ano 2000, frase acabou captada por microfones de equipes de TV. "A dor da escravidão é como a de um cálculo renal: não adianta dizer, tem que sentir." — Declaração durante visita ao Senegal, em abril de 2005, no primeiro mandato do petista.
- "A Venezuela vive um excesso de democracia." — Frase de setembro de 2005, ao assinar parceria com o país então comandado por Hugo Chávez, ilustra posição controversa de Lula sobre o tema. "O buraco é tão fundo que qualquer dia a Petrobras vai trazer um japonesinho na broca." — Em setembro de 2008, ao ressaltar o trabalho da estatal de petróleo.
- "Uma mulher não pode ser submissa ao homem por causa de um prato de comida. Tem que ser submissa porque gosta dele." — A fala de teor machista ocorreu em janeiro de 2010, já na reta final do segundo mandato na presidência.
- "Cadê as mulheres de 'grelo duro' do PT?" — Em conversa privada com o ex-ministro Paulo Vannucchi, em 2016, grampeada e tornada pública por decisão do ex-juiz da Lava-Jato Sergio Moro.