O PLP 257 e o resgate de conceitos básicos
Ouvi recentemente a definição de que o governo Michel Temer é um governo “vintage”. Nada mais adequado se considerarmos que isso significa a volta aos conceitos básicos, aqueles que são atemporais e definem os alicerces e as práticas que sobrevivem a modismos e experimentos nem sempre bem-sucedidos.
Podemos colocar na categoria “vintage” o realismo fiscal e as ações de controle de gastos; a volta a uma política econômica liberal e o abandono do desastre que foi a “nova matriz econômica”; a agenda de privatizações, que tomou o lugar das “desestatizações” envergonhadas do governo afastado; o resgate da responsabilidade fiscal e, no campo político, a relação com o Congresso Nacional, em que governo é governo e projeto de governo tem apoio da base do governo. Básico, não? Pois não era assim até pouquíssimo tempo atrás.
Ainda nesse conjunto, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 257 surge também como uma volta ao básico. Embora tenha sido alçado ao conhecimento público como o projeto que perdoa a dívida dos Estados com a União, ele vai muito além.
Os entes subnacionais entraram em colapso, informação que deixou de ser novidade depois que as mazelas de Estados emblemáticos como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul ficaram conhecidas em rede nacional. Dentre as medidas de socorro surgiu um acordo entre União e Estados, em que a renegociação das dívidas ganhou relevância, mas o que de fato importa, que é a necessidade de um ajuste estrutural nas contas dos Estados, passou quase que despercebido. Afinal, todos se concentraram em criticar (mais ou menos acertadamente) a irresponsabilidade fiscal dos governos estaduais, sem se aprofundar no que o projeto tem de mais relevante, que são as contrapartidas de ajuste e as correções no conceito de pessoal da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Parte-se da constatação de que o problema dos Estados não é de endividamento, e sim do atual patamar de gastos correntes. Estes crescem historicamente acima da inflação e, mais grave, acima da taxa de crescimento das receitas. A conta é simples: se os gastos – em particular os de pessoal – aumentam acima do crescimento das receitas e se, adicionalmente, as receitas param de crescer, é natural que, mais cedo ou mais tarde, as despesas superem as receitas. Estamos no mais tarde, isso já aconteceu há muito na maioria dos Estados brasileiros e ficou mais evidente a partir da frustração de receitas extraordinárias e ordinárias que passamos a enfrentar desde o início de 2015.
Voltemos, então, aos conceitos. Os Estados sofreram colapso semelhante na década de 1990, quando então se partiu para a renegociação das dívidas com a União, culminando na Lei de Responsabilidade Fiscal, editada em 2000. Um dos objetivos da LRF era evitar uma nova crise fiscal dos entes subnacionais e para isso um dos pilares foi a definição de um teto para o comprometimento da receita com despesas de pessoal. A ideia é simples: há que limitar os gastos com pessoal para que sobrem recursos para investimentos e custeio da máquina pública.
Afinal, de que servem médicos se não há remédios ou hospitais minimamente equipados? Ou policiais sem viaturas ou equipamentos de segurança e armas? Ou professores sem escolas, ou dando aulas para alunos sem merenda, ou sem alunos por falta de transporte?
Não foi, portanto, por arbitrariedade do legislador, ou pura e simples maldade ou malquerença em relação aos servidores públicos – e menos ainda para evitar o desenvolvimento de instituições fundamentais como o Judiciário, o Ministério Público ou a Defensoria Pública – que se definiu um teto para as despesas de pessoal. Ao contrário, foi para que se exigisse uma gestão eficiente de recursos que são escassos (sim, os recursos públicos também o são!). Esse teto foi então estipulado em 60% para o caso dos Estados e distribuído entre os diversos Poderes de forma a que cada um tenha de atender a seu limite máximo.
Ao longo do tempo, contudo, o que se observa é que os Estados, legitimados pelos Tribunais de Contas, têm driblado esse teto ao criar despesas de pessoal fora dos conceitos da LRF. Auxílios de toda sorte, verbas indenizatórias e até mesmo despesas com pensionistas e o Imposto de Renda sobre a folha de pessoal têm sido considerados como “outras despesas”, sendo excluídas dos limites da LRF.
O que o PLP 257 faz é aprimorar o conceito e incluir essas despesas dentro dos limites, dando aos Estados – e a todos os Poderes – o prazo de dez anos para se reenquadrarem nos limites originais. Adicionalmente, esse projeto estabelece um controle para o aumento das despesas correntes, a exemplo do que faz a proposta de emenda constitucional (PEC) dos gastos. O objetivo é garantir que, passados os 24 meses de carência, os Estados consigam arcar com o serviço das dívidas – e não tenham consumido esse espaço com novas despesas obrigatórias, o que invariavelmente nos levará novamente à mesa de negociação em 2018.
Logo, é descabido o argumento de que haverá um desmonte da Lava Jato ou demissões em massa nos Poderes autônomos como consequência da aprovação do PLP 257. Há que voltar ao básico e levantar a questão da forma certa – com base nos números corretos: se estamos gastando, 75%, 80%, 85% das nossas receitas com despesas de pessoal e não têm sobrado recursos para garantir condições de trabalho aos milhares de servidores públicos, tampouco para investimentos básicos, é preciso refazer o debate.
E esse debate passa pela definição de prioridades e por exigir eficiência na gestão dos recursos públicos, inclusive no que se refere a recursos humanos. Essa é a única forma de garantir a sustentabilidade dos direitos adquiridos pelos servidores e a solidez institucional dos diversos Poderes. Há aí uma agenda que precisa ser aberta. Mas não será escamoteando os números e fingindo que o problema não existe que conseguiremos reverter o desequilíbrio atual e fazer o debate necessário.
* ANA CARLA ABRÃO COSTA É DOUTORA EM ECONOMIA PELA FEA-USP, SECRETÁRIA DE ESTADO DA FAZENDA DE GOIÁS / o estado de sp