Transferência de renda não é suficiente para acabar com a fome. Especialistas dizem o que falta
Por João Sorima Neto e Vinicius Neder— São Paulo e Rio / o globo
O relatório anual da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre acesso a alimentos mostrou uma redução da quantidade de pessoas famintas no Brasil em 2023. Segundo o documento, publicado ontem por cinco agências da entidade, com a FAO (alimentação e agricultura) à frente, 8,4 milhões de brasileiros passaram fome entre 2021 e 2023, ou 3,9% da população, menos do que dos 9 milhões (4,2%) de 2020 a 2022, quando o país ainda amargava os efeitos da pandemia de Covid-19.
O Brasil havia saído do Mapa da Fome, mas retornou após a pandemia. Em discurso ontem em encontro ministerial do G20, o grupo das maiores economias do mundo, mais a União Europeia e a União Africana, no Rio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu que o país sairá do Mapa da Fome da ONU até 2026, último ano de seu governo
Os números divulgados pela ONU mostram que, apesar de a extrema pobreza estar no menor nível histórico, a insegurança alimentar ainda é maior que em 2013, apesar da melhora recente, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social).
Para ele, esses dados mostram que políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e melhoria do mercado de trabalho são condições necessárias, mas não suficientes para resolver o problema da insegurança alimentar.
—Fatores como a alta do preço dos alimentos, com a guerra na Ucrânia, falta de apoio à agricultura familiar, atraso na entrega da merenda escolar, pioraram as condições de insegurança alimentar no país — explica ele, ponderando que não se sabe o peso de cada uma delas no número final e que quando se olha apenas 2023 houve melhora em ambos indicadores (extrema pobreza e insegurança alimentar).
Por isso, diz Neri, programas como o Bolsa família têm impacto direto para redução da pobreza, mas não na redução da insegurança alimentar.
Para o economista, tanto os dados da ONU, através da FAO, lançados a cada três anos, e os divulgados pelo governo, considerando condições de segurança alimentar severa, são indicadores importantes.
— O dado da FAO capta a situação a cada três anos e tem flutuações que podem não refletir as condições brasileiras. Já os dados do IBGE seguem a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e são muito bem feitos. Entretanto, são dados que não são comparáveis.
O economista José Giacomo Baccarin, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, e um dos fundadores do Instituto Fome Zero, avalia que a melhoria de renda, seja via aquecimento do mercado de trabalho ou programas sociais, como o Bolsa Família, explicam a redução do número de pessoas em insegurança alimentar.
Alta menor de alimentos
Baccarin lembra que, quando se olha apenas para 2023, a redução da insegurança alimentar é ainda maior. Ele observa que, no ano passado, houve queda no preço dos alimentos, o que também contribui para a melhora dos dados, já que a população mais pobre gasta entre 30% a 40% do orçamento com comida.
— E a melhora deve continuar este ano. Acredito que até 2026 seja possível sair do Mapa da Fome. O principal fator para isso é o aumento de renda, que é acesso garantido ao alimento. A população com renda mais alta melhora tanto a situação financeira quanto psicológica, deixando de ter a alimentação como preocupação principal — explica ele.
Mariana Pereira, colíder da Força-Tarefa Segurança Alimentar da Coalizão Brasil, avalia que, apesar da melhora do indicador, 8,4 milhões em situação de fome ainda é um patamar elevado. Ela diz que os números devem continuar melhorando.
— Os números caíram num percentual importante e isso pode ter sido reflexo do aumento do valor do Bolsa Família nos últimos anos. É preciso lembrar que o país voltou a figurar no Mapa da Fome da ONU durante a pandemia — disse Mariana Pereira.
Em 2022, ano da eleição, o Auxílio Emergencial dado no governo Bolsonaro chegou a R$ 600. No ano passado, o programa voltou a ter o nome de Bolsa Família, nesse mesmo patamar, mas o governo Lula deu um valor adicional para as famílias com gestantes, crianças e adolescentes, com pagamento extra de R$ 150 por cada criança da casa com até seis anos e de R$ 50 para os dependentes de sete a 18 anos incompletos. Gestantes também passaram a receber mais R$ 50.
Agricultura familiar
Mariana cita ainda o aumento do crédito rural em 43,3% para agricultura familiar, com juros mais baixos. O novo Plano Safra da Agricultura Familiar 2024/2025 trouxe mais incentivos para quem produz alimentos básicos. Quem produzir arroz, por exemplo, encontrará juros reduzidos para 3%:
— Essa agenda de produzir alimentos em maior quantidade e com mais qualidade está atrelada às mudanças climáticas e é muito importante.
Para Rodrigo Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, entidade fundada pelo sociólogo Herbert de Souza para atuar no combate à fome, os dados da ONU mostram que as políticas públicas importam no enfrentamento do problema.
Na visão dele, a retomada do Bolsa Família, com a volta das regras de contrapartidas, como exigir vacinação e frequência escolar das crianças, fez a diferença para reduzir a fome no país em 2023. O avanço não bastou para tirar o país do Mapa da Fome, em parte, porque a retomada das políticas sociais leva tempo.
— Tenho plena certeza de vamos melhorar os níveis de 2014 (quando o Brasil saiu do Mapa da Fome). É o exemplo que o mundo precisa para concretizar na cabeça que é a política pública que resolve a questão da fome. A fome é uma decisão política — afirma Afonso.