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100 DIAS DEPOIS DA DISTOPIA

Por José Cesar (Zeca) Martins / O ESTADÃO DE SP

 

Em meados de 2022, o grupo Derrubando Muros lançou uma Agenda Inadiável. Somamo-nos à resistência democrática com o sonho de um país pacificado e com oportunidades para todos. Era urgente parar a tragédia ambiental e humana, e isso foi parcialmente conquistado com a derrota de Bolsonaro. Mas ainda estamos distantes de ter um Brasil que nos orgulhe.

 

Como ativistas sem parti pris ideológicos e sem vieses partidários ou religiosos, para nós, a urgência de superação do que nos aflige se iguala ao desejo por soluções permanentes. Ao escolher entre ações paliativas ou estruturais, precisamos das duas.

 

Além disso, uma agenda que se inicia por proposições inadiáveis, para ser democrática e promotora de equidade, precisa ser compartilhada por muitos, sendo, ao mesmo tempo, porosa à maior gama de contribuições e fiel aos princípios transformadores que a originaram.

 

Nos primórdios da luta democrática, com os partidos proscritos, OAB, CNBB, IAB, ABI, SBPC galvanizavam ações e pautavam o front das lutas democráticas. Hoje, essas entidades perderam espaço para centenas de influenciadores cujas credenciais são vagas como a nuvem onde habitam, e os partidos se converteram em sinecuras das quais as pessoas que zelam por sua reputação se afastam.

 

Onde nos perdemos desde que superamos a ditadura em 1988? De lá para cá, faltaram entregas à sociedade. A desigualdade se cristalizou e a política, que nos animou na luta pela democracia, soa hoje como um caminho minado por desesperança.

 

Para 80% da sociedade o sistema político opera como um ambiente recheado de cinismo, insensível às suas dores. Segundo as enquetes, 40% da população prefere uma ditadura a um regime democrático.

 

O déficit de representatividade e a anedótica baixa qualidade na Realpolitik são apenas parte da explicação para os poucos resultados entregues pela democracia e o pouco apreço de boa parte da população por ela.

 

O Estado brasileiro custa caro para quem paga e é insuficiente para quem mais precisa. O Estado democrático não entrega pouco por arrecadar pouco, mas sim porque sua função é subvertida por grupos de interesse. São captores que convertem o interesse público em privilégios de poucos. Sem enfrentar o principal, os governos eleitos se contentam com mendigar por 2% ou 3% do Orçamento. Resta um Estado infantilizado, complacente e incapaz de servir à maioria e, portanto, à democracia.

 

Ao propormos uma agenda, quisemos terçar ideias transformadoras junto com o endereçamento das urgências sociais. Colocar os brasileiros acima da linha da pobreza é uma obrigação moral. Garantir que as pessoas tenham café da manhã, almoço e jantar é o básico e não deve ser o teto de nossas aspirações.

 

Se partidos ou organizações tradicionais já não produzem respostas, é dever cívico da elite intelectual e moral carregar mais do que seu próprio peso. Nossa ambição como país precisa ser enunciada. Nosso sonho deve ser expresso como se fosse um software que conecta os afetos de toda a sociedade por um propósito superior.

 

A China criou o Chinese Dream para promover seu rejuvenescimento, sua modernização e obsessão por erradicar a pobreza. O sonho, no caso, abrange muita inovação e sustentabilidade ambiental. A Coreia do Sul faz uma evocação forte: Korea New Deal, para um plano que alinhou a digitalização com a criação de empregos qualificados e as questões ambientais. Atrás vieram investimentos em energia renovável, infraestrutura física e digital e apoio aos pequenos negócios.

 

O Vietnã é emblemático. Destruído na guerra em 1975, nos anos 80 enfrentou um desarranjo econômico com inflação de 700% ao ano. No início dos anos 90, adotou o Doi Moi, reformas pró-mercado reunidas sob o slogan Vietnã 2035: a caminho da prosperidade, criatividade, equidade e democracia. Desde então, o Vietnã cresceu entre 6% e 8% ao ano e, em 2022, superou o Brasil em valor exportado. Todos os países que decidiram superar o atraso tiveram seu conceito unificador.

 

O progresso não acontece por inércia. Mudança implica visão, decisão e muita ousadia. É indiscutível que no Brasil, após a hecatombe do governo passado, o cuidado com as pessoas é a prioridade.

 

Mas o viés de conquistas imediatas precisa se integrar com a ambição de ver o Brasil despontar como um país que dá certo. Essa possibilidade só se realizará com ambição coletiva e lideranças desprendidas dos grupos de pressão e alinhadas em torno de uma agenda que una o País.

 

Por isso, quando olhamos para o atual governo, consumido no curto prazo, ainda o vemos sem ambição para levantar a barra de nossas possibilidades, encarando as reformas imprescindíveis como fizeram recentemente os países que saíram da renda média para o nível de países avançados. Quero estar errado neste julgamento quanto ao tamanho da ambição do atual governo e sua capacidade para fazer o Brasil decolar. Se as evidências mostrarem meu erro, será o erro mais feliz que já cometi.

 

SOCIÓLOGO, INVESTIDOR EM TECNOLOGIA, É COORDENADOR DO DERRUBANDO MUROS

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