Quadro fiscal não é de ‘terra arrasada’, diz Ministério da Economia
Com a aproximação da troca de governo e o envio ao Congresso da chamada PEC da Transição, que libera gastos sem lastro de R$ 200 bilhões em 2023, voltou a prosperar a narrativa de que o País vive uma situação de “terra arrasada” na área fiscal, que foi propagada no auge da pandemia, mas não foi confirmada pelos números.
Essa narrativa está sendo usada não para brecar novos gastos, mas para reforçar a ideia de que o País ficará “ingovernável” se não for concedida ao novo governo uma “licença para gastar” além do que o Orçamento permite e dos limites estabelecidos pela legislação.
O próprio presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, segundo a “Coluna do Estadão”, pediu ao marqueteiro Sidônio Palmeira, que trabalhou na campanha petista, para elaborar um plano de comunicação destinado a reforçar uma suposta “herança maldita” a ser recebida do governo Bolsonaro, numa tentativa de ressuscitar a estratégia adotada no início de seu primeiro mandato, em 2003, contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a gestão tucana.
De acordo com um estudo elaborado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), cujos dados foram mencionados recentemente pelo ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, o presidente Jair Bolsonaro deixaria para seu sucessor um rombo fiscal astronômico, estimado em R$ 430 bilhões – quase três vezes o custo anual do Auxílio Brasil, de R$ 156 bilhões, conforme números oficiais, considerando o pagamento de um benefício de R$ 600 por mês para 20 milhões de famílias, como acontece hoje.
Pelas contas do Ministério da Economia, porém, a real situação fiscal do País está muito longe do quadro catastrófico traçado por acadêmicos, analistas de mercado e políticos aliados a Lula, tanto em relação a 2022 quanto a 2023. “O País pode fazer uma coisa muito ruim achando que já está tudo arrombado mesmo”, disse o ministro Paulo Guedes nesta terça-feira, 22, em Brasília. “Não existe isso. Não acreditem em fakes, não acreditem em mentiras. O grande problema é seguir a mentira e acreditar na mentira. Partindo do diagnóstico errado, você comete erros grosseiros.”
Neste ano, conforme as estimativas mais recentes do ministério, as contas públicas deverão fechar com um superávit primário – o primeiro desde 2013 – de cerca de R$ 90 bilhões ou quase 1% do PIB (Produto Interno Bruto). Somado ao resultado de Estados e municípios, que também deverão fechar as contas no azul, segundo o órgão, com cerca de R$ 250 bilhões em caixa, equivalentes a 1,5% do PIB, o superávit do setor público como um todo ficará em torno de 2,5% do PIB – bem acima do que indicavam as previsões de muitos economistas até pouco tempo atrás.
Ao mesmo tempo, a dívida pública bruta deverá cair para 74,3% do PIB, 4,8 pontos abaixo de 2021 e um ponto abaixo de 2018, no fim do governo Temer – um cenário também mais róseo do que as projeções feitas pela própria equipe econômica e por boa parte dos analistas.
Na avaliação do ministério, dois fatores explicam a boa notícia no campo da dívida pública. Um deles é a revisão do PIB de 2020, de -3,9% para -3,3%, anunciada pelo IBGE depois das eleições. O outro é a devolução demais R$ 45 bilhões pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ao Tesouro, referente ao empréstimo de quase R$ 500 bilhões concedido à instituição durante o governo Dilma – a última parcela, de R$ 24 bilhões, deverá ser quitada em novembro de 2023.
Aumento da arrecadação
Mesmo com o aumento significativo de despesas acima do teto de gastos por interesses políticos e para o combate à pandemia, que consumiu cerca de R$ 700 bilhões, o resultado positivo na área fiscal foi possível, na visão do ministério, porque os desembolsos tiveram duração temporária ou foram compensados pelo crescimento da receita.
”Toda vez que aumentávamos a despesa nós travávamos o gasto no futuro ou compensávamos via arrecadação”, afirmou o ministro das Minas e Energia, Adolfo Sachsida, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, durante a comemoração de 30 anos do órgão, na semana passada.
Em 2020, como a retração econômica foi mais suave do que indicavam as previsões no auge da pandemia, de uma queda de até 10% no PIB, e como a atividade econômica acabou voltando em “v”, apesar do ceticismo predominante na época, a arrecadação acabou superando as expectativas mais otimistas, abrindo espaço fiscal para a absorção de novas despesas, sem gerar um rombo nas contas públicas.
Foi o que aconteceu, por exemplo, de acordo com o ministério, com a chamada PEC Kamikaze, que liberou R$ 41,25 bilhões em gastos fora do teto, que limita o crescimento das despesas do governo num ano à inflação do ano anterior. Pelas contas oficiais, o furo no teto neste ano foi mais do que compensado pelo crescimento da arrecadação, que acumulou uma “gordura” de R$ 57 bilhões, com impacto fiscal líquido nulo. E ainda sobraram quase R$ 16 bilhões para lastrear a desoneração de tributos federais sobre os combustíveis.
Orçamento secreto
Mesmo quando o STF (Superior Tribunal Federal) determinou o pagamento de precatórios no valor de R$ 90 bilhões às vésperas da aprovação do Orçamento de 2022, muito acima dos R$ 40 bilhões reservados para isso na proposta encaminhada ao Congresso, o Ministério da Economia diz que conseguiu manter o equilíbrio fiscal, garantindo a quitação à vista das pendências aos credores de menor porte e parcelando os pagamentos devidos aos grandes credores.
O órgão contesta também a narrativa de que o governo Bolsonaro deixará uma “bomba fiscal” para 2023 e afirma que o cumprimento de promessas de campanha feitas pelos dois candidatos, como a manutenção do Auxílio Brasil de R$ 600 e a concessão de aumento real para o salário mínimo no ano que vem, não deverá criar um cenário apocalíptico para as contas públicas.
Em relação ao salário mínimo, o ministério diz que há espaço na proposta orçamentária para custear um aumento real de 1,7% a 1,8% para 2023 sem estourar o teto de gastos. Como a proposta considerou uma inflação de 7,5% neste ano, mas a taxa deverá ficar em torno de 5,5%, de acordo com projeções mais recentes, a diferença será suficiente para lastrear o aumento. Há também na proposta, segundo o ministério, R$ 17 bilhões destinados ao pagamento da parcela dos precatórios de 2022 rolada para 2023.
Para manter em R$ 600 o Auxílio Brasil, que deveria voltar a ser de R$ 400 no ano que vem, o órgão calcula que serão necessários R$ 52 bilhões adicionais, destinados a cobrir o pagamento da diferença de R$ 200 não prevista na proposta orçamentária. Se Bolsonaro tivesse vencido a eleição, a ideia da equipe econômica era propor a tributação de lucros e dividendos, cuja receita é estimada em R$ 69 bilhões por ano, para não deixar essa despesa sem lastro.
Caso isso acontecesse, ainda sobrariam R$ 17 bilhões para aplicar em outros programas e em investimentos públicos, sem tingir de vermelho as contas governamentais. Esse dinheiro poderia ser usado, pelos cálculos do ministério, para manter, total ou parcialmente, as desonerações de tributos federais sobre os combustíveis, que devem se encerrar no fim do ano.
Ou, então, para cobrir os R$ 5,6 bilhões cortados de programas sociais, como a merenda escolar, o Farmácia Popular, a aquisição de equipamentos para combate ao câncer e a compra de livros didáticos, que foram direcionados ao chamado Orçamento Secreto, operado pelo Congresso e pela Casa Civil. Ficaria para depois o cumprimento da promessa de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos por mês, também feita por Bolsonaro (e por Lula) durante a campanha.
Mesmo que o imposto sobre lucros e dividendos não fosse aprovado neste ano e só fosse cobrado em 2024, o rombo fiscal decorrente do cumprimento dessas promessas ficaria entre R$ 52 bilhões e R$ 74,2 bilhões, com a manutenção do corte de tributos federais sobre os combustíveis e a reposição da verba cortada de programas sociais.
De qualquer forma, ainda seria um valor muito menor do que os R$ 200 bilhões que o governo eleito quer gastar a descoberto e ficaria próximo aos R$ 80 bilhões previstos na PEC alternativa apresentada pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) e aos R$ 70 bilhões da PEC do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE).