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Saiba como é viver no meio dos rios e sem água potável na Amazônia, região com menos saneamento do país

Por Ana Lucia Azevedo — Uarini (AM) O GLOBO

 

À medida que a manhã avança, Maria Helena Sinfrônio Costa, de 61 anos, se inquieta com a demora do neto Toni, que saiu para pescar. O menino de 12 anos vai ajudá-la a pegar água. Eles vivem às margens do rio Solimões, que forma o Amazonas na confluência com o Negro. Mas falta água para beber, cozinhar e tomar banho. Lavar as mãos é luxo. Mesmo com 81% da água doce do Brasil e 20% da de todo o planeta, a Amazônia tem os piores índices de saneamento básico do país.

 

Na Região Norte, menos de 60% da população têm acesso à água tratada e só 13% contam com rede de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil. É um dos maiores problemas da Amazônia rural, cuja população vive como há mais de um século, afirma Marcos Freitas, professor da Coppe/UFRJ e ex-diretor da Agência Nacional de Águas:

— Faltam as coisas mais básicas. Estamos falando de sistemas muito simples, como coleta de chuva, poços artesianos, acesso a cloro.

Segundo o IBGE, 60% da população rural do Amazonas retiram a água de rios, igarapés, lagos ou açudes. Sem tratamento. Só 10% dos moradores têm acesso à rede encanada.

— Parece loucura, mas é a vida na Amazônia — admite Raimundo Rodrigues, o Xexéu, de 29 anos, presidente da Associação de Moradores e Usuários das 207 comunidades ribeirinhas de sete municípios do entorno da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, onde vivem 15 mil pessoas.

Uma delas é Vila Soares, onde mora Maria Helena, no município de Uarini, a 733 quilômetros de Manaus. Quando a bomba que serve à família dela e a outras três não funciona por falta de eletricidade, o que é comum, todos recorrem a um igarapé a alguns quilômetros. A chuva guardada em uma pequena caixa d’água sem tampa nunca basta.

 

Chegar aos igarapés significa quase sempre andar pela floresta alagada por mais de cinco quilômetros com lama nos pés. Na comunidade de Punã, a dez minutos de barco de Vila Soares, mulheres e crianças usam uma trilha acidentada e com pernilongos por meia hora.

— A água dos igarapés precisa de tratamento porque tem pH ácido e metais pesados — alerta a microbiologista e pesquisadora da Fiocruz Patrícia Orlandi.

Perigo nos rios

O rio tem perigos como arraias enterradas no leito, mandis que dão ferroadas, piranhas e candirus, um minúsculo bagre que penetra na uretra, no ânus ou na vagina para sugar sangue.

Nada menos que 33% dos ribeirinhos relatam ataques por algum animal no percurso entre sua casa e o rio e 44% já sofreram algum tipo de acidente nos barrancos de lama que tornam a água clara, mas mais imprópria, segundo uma pesquisa do Instituto do Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) nas comunidades da região.

— Se a gente estiver com algum machucado, atrai mesmo piranha e candiru — conta Maria Helena.

Toni chega com o almoço, uma pirapitinga arpoada não muito longe de casa, que teve parte do corpo devorada por piranhas logo depois de ser atingida.

Maria Cecília Gomes, pesquisadora do IDSM, diz que poços artesianos nem sempre se adequam às comunidades de várzea, que passam metade do ano alagadas e cujo solo é instável. Em áreas urbanas, como na várzea de Manaus, a água de mais qualidade está a 80 metros de profundidade. Além disso, há o risco da contaminação por fossas de esgoto.

Cecília considera que cisternas seriam mais adequadas, na maioria dos casos.

— Teriam o mínimo para o consumo pessoal, inclusive nos meses de seca.

Outra questão é a limpeza da água. Métodos como decantar ou usar pastilhas de cloro têm de ser ensinados.

— As pessoas pensam que é um trabalho a mais, em uma vida que já é sofrida — explica Cecília.

Novos vírus

Microbiologista da Fiocruz, Patrícia Orlandi alerta que as águas da Amazônia são uma sopa de doenças. Há rotavírus, adenovírus, vírus da hepatite, parasitas e bactérias. E vírus novos para a ciência, causadores de paralisia.

Foi em fezes de crianças de comunidades de Manaus que Patrícia e colegas descobriram, em 2015, um vírus causador de paralisia temporária nas pernas e diarreia em crianças de até 5 anos. Do gênero Gemycircularvirus, também pode provocar encefalite e matar.

— Essas crianças ficaram sem andar por semanas porque não têm água de qualidade — enfatiza.

Patrícia acrescenta que no estado há um alto percentual de portadores da bactéria salmonela, causadora de infecção intestinal.

— Tudo é jogado nos rios sem qualquer tratamento — lamenta.

Com o coliforme fecal abundante em comunidades amazônicas, crianças perdem a capacidade de absorver nutrientes, por frequentes crises de diarreia.

A bactéria Shigella, outra grande causa de infecções intestinais, tem elevado índice de contaminação. No Brasil, a taxa já é alta, é de cerca de 4%. Mas na Amazônia Ocidental, chega a 45%.

A microbiologista lembra pesquisas que já mostraram alta contaminação por salmonelas e coliformes fecais do queijo coalho e do açaí no Amazonas.

Além do risco para a saúde humana, há o risco ambiental. Patrícia diz que o Igarapé do Mindú, que atravessa Manaus, recebe esgoto de várias comunidades, inclusive lançamentos contaminados por bactérias resistentes a medicamentos. O Mindú se junta ao Rio Negro e suas águas vão parar no Rio Amazonas. E, com isso, contamina bactérias ambientais.

— Um país onde crianças morrem de diarreia vive no atraso. São mortes totalmente evitáveis por condições de vida dignas — ressalta a cientista.

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