Auxílio Brasil: Motivação eleitoral impede revisão da estratégia social que gerou Bolsa Família, dizem especialistas
Fernanda Trisotto / O GLOBO
BRASÍLIA – O Auxílio Brasil, que vai substituir o Bolsa Família e que terá o benefício mínimo turbinado para R$ 400 até dezembro de 2022, desperdiça a oportunidade de rever estratégias de combate à pobreza e privilegia motivações eleitorais, apontam especialistas ouvidos pelo GLOBO sobre o plano confirmado na querta-feira pelo governo.
Para especialistas em políticas sociais, não há uma estratégia clara de combate à miséria e à pobreza, agravadas pela pandemia, como os dados e critérios técnicos que nortearam a formação do Bolsa Família em 2003, no governo Lula, a partir de benefícios sociais criados no governo de Fernando Henrique Cardoso.
A preocupação do presidente Jair Bolsonaro com a definição do valor mínimo do novo benefício (mais que o dobro da média atual do Bolsa Família, de R$ 189) deixou lacunas no redesenho do programa e incertezas sobre a fonte de custeio.
O contexto de empobrecimento da população não deixa dúvidas sobre a necessidade de expandir políticas sociais como as de transferência de renda, mas a forma como o Planalto definiu o valor do benefício não parece acompanha de uma atenção ao desenho do programa, avalia Letícia Bartholo, gestora governamental e ex-secretária nacional adjunta do Bolsa Família.
Para ela, o componente eleitoral e o caráter “temporário” põem em risco a continuidade de uma política que foi muito exitosa até agora:
— Temos aí um problema paradoxal: um programa de transferência de renda cujo objetivo é garantir uma segurança de renda mínima à população mais vulnerável se torna um poço de insegurança. Isso é ruim para um próximo governo e para os operadores da política pública, que terão de resolver esse enrosco. Mas, principalmente, é péssimo para as milhões de pessoas que recebem o benefício.
‘Oportunismo eleitoral’
A falta de dados e evidências para nortear a reformulação do Bolsa Família, que será oficialmente extinto no ano que alcançou sua “maioridade” — o programa completou 18 anos ontem, justamente no dia em que o governo anunciou o Auxílio Brasil de R$ 400 —, também é um problema apontado pelo professor do Insper Sergio Firpo:
— Não seria surpreendente que a gente não saiba o quanto esse número (do benefício médio) vai gerar de alívio em pobreza, redução de desigualdade. Não tem uma simulação para o debate, que é pautado por questões políticas e certo oportunismo, olhando para o ano eleitoral.
Desmonte de uma marca
A troca do nome do programa reforça as motivações eleitorais, já que Bolsonaro pretende concorrer à reeleição de 2022 e o Bolsa Família é reivindicado como uma marca do ex-presidente Lula.
Além da falta de evidências sobre o efeito do novo programa, o impacto fiscal também é incerto, mas a proposta segue em ritmo acelerado: o governo quer pagar o Auxílio Brasil a partir de novembro, um mês depois de o auxílio emergencial sair de cena.
— A pulverização de objetivos dentro de uma mesma política pública e sua complexificação operacional podem desmontar o foco fundamental e exitoso do Bolsa Família: a transferência de renda, articulada à educação e à saúde. Porém, o jogo ainda está em campo — diz Letícia Bartholo.
A especialista vê no Congresso espaço para corrigir os problemas na medida provisória do Auxílio Brasil, ao mesmo tempo que a equipe técnica que conduz o Bolsa Família pode atuar para a contenção de danos. Firpo faz uma avaliação parecida:
— Eles querem fazer um desmonte, mas não vão ser bem-sucedidos porque o Bolsa Família é um programa que funciona tão bem que vai ser difícil ser desmontado.
Indefinição sobre novo desenho
O redesenho do Bolsa Família feito pelo governo mantém, de certa forma, a estrutura de benefícios básicos pagos conforme a composição familiar, mas cria uma série de novidades: de voucher para creche e pagamento de bônus por desempenho escolar e esportivo ao incentivo para que famílias beneficiárias deixem gradualmente o programa quando obtiverem uma fonte de renda fixa, há muitos adicionais nesse novo desenho.
Não estão claros quais serão os critérios para definir linha de pobreza e o valor dos benefícios, o que ajudaria a estimar quantas pessoas teriam direito a ingressar no programa e também o impacto fiscal da medida, dizem os especialistas.
Relator da medida provisória (MP) que criou o Auxílio Brasil, o deputado Marcelo Aro (PP-MG) disse ao GLOBO que seu relatório estava praticamente pronto antes da reviravolta do governo para anunciar os R$ 400.
O deputado trabalhava com um horizonte orçamentário de R$ 60 bilhões para o programa, mas esse custo deve ser elevado, o que não será viável dentro do teto de gastos.
— Não vejo preocupação do governo em resolver o problema da camada mais vulnerável — criticou o parlamentar, que se queixa de falta de interlocução com o Ministério da Economia.
Aro reconhece que a ausência de parâmetros monetários prejudica a melhor redação do texto. Ele não havia decidido se atribuiria valores aos benefícios na própria MP. Esse ponto é citado como uma falha por Letícia Bartholo:
— O Auxílio Brasil, no texto que veio do Executivo, não resolve as lacunas do Bolsa Família, como as filas e falta de critérios de reajuste das linhas de entrada e dos benefícios. Consegue piorá-las, na medida em que não traz um parâmetro monetário sequer em toda a MP.