Quase metade do orçamento do Auxílio Brasil vai para o Nordeste, crucial para o plano de reeleição de Bolsonaro
Fernanda Trisotto, Raphaela Ribas e Carolina Nalin / O GLOBO
BRASÍLIA e RIO - A criação do Auxílio Brasil com benefício mensal de R$ 400, mais que o dobro do que a média no atual Bolsa Família, causou a crise fiscal da semana, abalou o mercado financeiro e provocou nova debandada na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Entenda: Por que os mais pobres serão os mais afetados pelo descontrole fiscal?
Mas, politicamente, todo o ruído pode ter valido a pena para o presidente Jair Bolsonaro. Além do valor turbinado até dezembro de 2022, o programa substituto do Bolsa Família promete ampliar de 14,6 milhões para 17 milhões o contingente de lares vulneráveis atendidos.
E o maior impacto será sentido no Nordeste, onde Bolsonaro tem o menor índice de aprovação a caminho da reeleição. A região receberá praticamente metade do valor do Auxílio Brasil: ao menos R$ 36,6 bilhões em 2022, ano eleitoral.
O plano da ala política do Planalto e dos aliados do centrão no Congresso é tentar repetir o pico de popularidade do presidente provocado pelo auxílio emergencial pago para amenizar os impactos econômicos da pandemia.
Em setembro do ano passado, 33% dos nordestinos consideravam o governo ótimo ou bom, contra média nacional de 40%, segundo a pesquisa CNI/Ibope da época.
Fila é predominantemente nordestina
O governo promete zerar a atual fila de espera do Bolsa Família, que tem 1,19 milhão de pessoas. Desse total, 41,6% são do Nordeste, que concentra 27% da população brasileira.
Levando em conta essa expansão e o aumento do pagamento médio mensal de R$ 189 do Bolsa Família para no mínimo R$ 400 do Auxílio Brasil para quem já está no cadastro, o incremento nas transferências de renda no Nordeste será de R$ 20,5 bilhões em relação ao previsto anualmente no Bolsa Família atual.
Dados obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que o Nordeste conta com 493.423 famílias na fila do programa social, número superior até mesmo ao da região Sudeste, a mais populosa do país, que tem 401.994 famílias na espera.
Se a fila nacional de pessoas elegíveis para o Bolsa Família que não recebem hoje por falta de orçamento for zerada, o total de benefícios pagos na região subirá de 7,12 milhões para ao menos 7,62 milhões.
O governo promete ampliar o programa para além da lista de espera e introduzir novas modalidades de benefício, como bolsa atleta e de iniciação científica, o que pode ampliar ainda mais o impacto no Nordeste.
Expectativa alta entre os mais pobres
Historicamente, o Nordeste já concentra a maior parte de beneficiários do Bolsa Família, e a fatia será ampliada com a absorção da fila. Mas ainda não há previsões oficiais do impacto.
O novo programa pode ajudar imediatamente pessoas como a diarista Deuzimar de Oliveira, de 53 anos, de Timon, no Maranhão. Com faxinas, ela sustentava a família, mas, sem renda na pandemia, precisou de ajuda do governo.
Registrada no Cadastro Único, recebeu o auxílio emergencial em todas as fases, mas está apreensiva com o fim do programa neste mês. Ela tem dúvidas se vai ser incluída no Auxílio Brasil, cujo funcionamento o governo ainda não detalhou, mas diz que ainda precisa de ajuda:
— É com isso que a gente vai comprando as coisas. Tem água, tem luz, tem gás, e está tudo caro agora.
A líder comunitária Eurídice Andrade, de 64, quer receber o novo auxílio. Ela mora com o filho na comunidade do Coque, no Recife, e já recebeu Bolsa Família há alguns anos, mas foi cortada porque alegaram que havia um CNPJ em seu nome: o da associação de moradores, entidade sem fins lucrativos que ela coordena.
— Meu auxílio acaba no dia 28 (de outubro). Gostaria de ter o novo auxílio, com certeza. Minha prateleira está vazia. Estou almoçando batatinha porque a carne acabou.
Em nota, o Ministério da Cidadania informou que o Auxílio Brasil “será regulamentado através de decreto a ser publicado nos próximos dias”.
Ganho político é incerto
Com a recuperação lenta da economia e alto desemprego, especialistas avaliam que o aumento das transferências no Nordeste deve provocar efeitos sociais e econômicos positivos a curto prazo, como interessa a Bolsonaro, cujo plano é garantir o pagamento mínimo de R$ 400 somente até dezembro de 2022, pouco depois da eleição.
Mas o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, aponta riscos na forma como o governo quer viabilizar isso, sacrificando o teto de gastos. A reação do mercado financeiro, com disparada do dólar e queda da Bolsa, indica que o descontrole fiscal trará consequências negativas a longo prazo, diz:
— O governo está dando um recurso para uma população muito carente de um lado e tirando por outro, porque pode ter mais inflação, menos crescimento e mais desemprego.
O professor do Insper Otto Nogami, observa que o auxílio emergencial incrementou a renda do nordestino, principalmente no interior, mais dependente do Estado. Mas alerta que o benefício turbinado dessa forma não melhora a situação a longo prazo.
Para Daniel Duque, da FGV, o Nordeste se beneficiaria mais se o governo tivesse organizado um aumento permanente no valor do Bolsa Família, mantendo o desenho do programa. A revisão do critério para demarcar linha de pobreza pela inflação também teria efeito positivo. Para ele, há o risco de a população ser envolvida em uma “jogada eleitoral” e se ver sem esses recursos em 2023.