A esquerda diante da democracia
Boulos subordina PSOL à narrativa que nasceu como tática do PT para conservar hegemonia lulista sobre esquerda na sequência da derrota representada pelo impeachment
“Este nosso encontro talvez fosse improvável”, sugeriu Guilherme Boulos no lançamento de sua pré-candidtura presidencial, diante de Caetano Veloso e um cortejo de celebridades. Improvável por quê? “O que nos uniu foi o avanço do conservadorismo, que nos forçou a buscar alianças novas”, explicou o candidato pelo PSOL. De acordo com a narrativa que vai sendo alinhavada pela esquerda, o Brasil já não vive numa democracia. O “golpe do impeachment” abriu uma fase de “autoritarismo” que equivale a “voltar 50 anos atrás” (portanto a 1968, segundo Boulos) e se destina a “retirar direitos” trabalhistas e previdenciários. Não é um bom caminho para enfrentar os desafios do ciclo pós-Lula.
Boulos subordina o PSOL a uma narrativa que nasceu como tática do PT para conservar a hegemonia lulista sobre a esquerda na sequência da desmoralizante derrota representada pelo impeachment. Do ponto de vista petista, a denúncia do “golpe de 2016” não passa de um expediente oportunista — e a prova disso é que o PT já anunciou a retomada da política de coligações eleitorais com os “golpistas” do MDB e do “centrão”. Mas aquilo que serve ao lulismo não serve à esquerda pós-lulista.
Taticamente, a denúncia do “autoritarismo” implica a “unidade das esquerdas” — isto é, uma frente formal (como quer Tarso Genro) ou informal (como prefere Boulos), no modelo da aliança de resistência à ditadura militar. Na prática, monta-se uma camisa de força eleitoral: após o primeiro turno, os partidos e movimentos de esquerda devem se juntar às candidaturas remanescentes do “campo da esquerda”, que tendem a ser aquelas patrocinadas pelo PT.
No caso da disputa presidencial, a esquerda fica virtualmente comprometida com o candidato ungido por Lula (seja ele Jaques Wagner, Fernando Haddad, Ciro Gomes ou outro). “Jamais vou pedir para você não ser candidato”, garantiu Lula em mensagem exibida no lançamento da campanha de Boulos, explicitando o sentido da parceria. Por essa via, o lulismo sobrevive ao ocaso político de Lula, ancorando as forças de esquerda ao redor de um cais em ruínas.
Estrategicamente, a negação da realidade é a pior das bússolas políticas. No Brasil, estão ausentes todos os traços clássicos dos regimes autoritários. As liberdades públicas não foram tocadas. A separação de poderes ficou comprovada pelo próprio impeachment e, no governo Temer, pelo fracasso do projeto de reforma previdenciária, dois lances de confronto do Congresso com o Executivo. A independência do Judiciário é atestada pelos inquéritos e denúncias contra Temer. O voto de Gilmar Mendes decidiu o habeas corpus a favor de José Dirceu. Lula está solto; Eduardo Cunha, preso. Apesar do que se propaga falsamente a partir do PT e do PSOL, os militares não são (nem poderiam ser) usados para reprimir manifestações políticas.
O Boulos que fala em retorno a 1968 — assim como as celebridades (devo dizer “intelectuais”?) que o cercam — reflete a dificuldade da esquerda pós-lulista de encarar os dilemas reais de nossa democracia bastante imperfeita. A narrativa farsesca, que soa como música aos ouvidos de convertidos, tem o efeito de isolar seus arautos numa redoma folclórica. Lula qualificou Boulos como “pessoa de muito futuro na política”. O dúbio elogio equivale a excluí-lo do presente.
A fonte de inspiração de Boulos e de boa parte do PSOL é o espanhol Podemos, fundado em 2014 sob o influxo das manifestações antiausteridade. Atraído pelo castrismo e pelo chavismo, o partido esquerdista classificou a monarquia parlamentar espanhola (o “regime de 1978”) como uma versão amenizada do franquismo. Nutrindo-se da recessão e dos escândalos de corrupção, o Podemos decolou como um míssil, chegando perto de ultrapassar o Partido Socialista para figurar como segundo partido do país. Contudo, entrou em declínio após as eleições gerais de dezembro de 2015, vitimado por seu próprio discurso de negação da democracia.
O ato desastrado inicial foi a recusa de um pacto de governo com os socialistas, o que propiciou a recondução dos conservadores ao poder. O ato seguinte foi uma aliança tácita com os nacionalistas catalães, que o conduziu a repetir o epíteto de “bloco monárquico” usado pelos separatistas contra todos os partidos constitucionalistas. A reação do eleitorado, expressa nas pesquisas de opinião, já empurrou o Podemos à condição de quarto partido do país. Farsas têm consequências — eis a lição espanhola.
Hipnotizada pelo passado, a esquerda pós-lulista ainda cultua a Cuba dos Castro, jura fidelidade ao regime agonizante de Nicolás Maduro, recusa-se a admitir o fiasco da política econômica dilmista, traça paralelos delirantes entre o governo Temer e o regime militar e, sobretudo, vira as costas ao diálogo democrático. Três décadas atrás, o PT rejeitou assinar a Constituição de 1988, a mesma que lhe permitiu governar o Brasil por 13 anos. Hoje, imitando o Podemos, seus presumíveis sucessores crismam todos os demais atores políticos como um “bloco autoritário”.
2018 não é 1968. Alguém precisa dizer isso a Boulos.
Demétrio Magnoli é sociólogo / O GLOBO