Cofres cheios: cidades recordistas em emendas 'Pix' registraram 94% de reeleição do prefeito ou vitória de sucessor
Por Dimitrius Dantas e Camila Turtelli— Brasília / O GLOBO
A abertura das urnas no domingo mostrou que cidades mais contempladas pelas chamadas “emendas Pix” — recursos enviados por parlamentares diretamente para o caixa das prefeituras — tiveram índice de reeleição de seus governantes maior do que o registrado no restante do país. Levantamento do GLOBO nos 178 municípios indicados pela Controladoria-Geral da União (CGU) como principais destinos destas verbas aponta que em cem deles o prefeito foi reeleito, enquanto em outros 45 conseguiu fazer um sucessor do mesmo grupo político.
Considerando apenas as cidades onde os atuais prefeitos concorreram a um novo mandato — 112 das 178 — a taxa de sucesso foi de 94,6%. Além dos cem reeleitos, seis conseguiram ir ao segundo turno e apenas outros seis já saíram derrotados.
O índice bate a taxa de recondução nas eleições deste ano, de 81,4%, a maior da história, superando os 63,7% de 2008, até então o mais alto. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dos 3.004 prefeitos que tentaram ser reconduzidos no domingo, 2.444 terão um novo mandato a partir de janeiro. Esse número ainda pode aumentar para 81,9%, pois 16 ainda disputarão o segundo turno.
Pagamento suspenso
Criada em 2019, as “emendas Pix” entraram na mira do Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto. O ministro Flávio Dino determinou que o Congresso e o governo deem mais transparência ao mecanismo para que seja possível saber como os recursos são gastos. No modelo atual, basta ao parlamentar indicar para qual cidade o dinheiro deve ir, sem necessidade de apresentar um projeto ou obra específica. Assim, prefeitos podem gastar a verba federal livremente, sem depender do aval do governo.
Além de suspender novos repasses, Dino mandou a CGU realizar uma auditoria nos desembolsos já feitos desde 2020 até hoje, o que soma R$ 16 bilhões. O órgão de fiscalização concentrou a análise nas 178 prefeituras e 22 governos estaduais que registraram o maior volume de recursos recebidos no período.
No topo do ranking dos municípios mais contemplados está Carapicuíba, cidade de 387 mil habitantes na Região Metropolitana de São Paulo, que recebeu R$ 150 milhões em emendas Pix na gestão do atual prefeito, Marcos Neves (PSDB). Em seu segundo mandato e sem poder disputar a reeleição, Neves conseguiu emplacar o aliado José Roberto (PSD) como sucessor. Ele teve 80,3% dos votos no domingo. Procurados, eles não retornaram o contato.
A segunda da lista é Macapá, capital do Amapá, onde Doutor Furlan (MDB) foi reeleito com 85,08% dos votos, o maior porcentual entre os prefeitos eleitos nas capitais. Durante seu mandato, a prefeitura recebeu R$ 128 milhões em emendas Pix, a maior parte enviada por parlamentares que fizeram parte de sua coligação neste ano. O principal padrinho dos recursos foi senador Lucas Barreto (PSD), que indicou R$ 45 milhões no período.
— O prefeito Furlan tem uma capacidade muito grande de trabalho de domingo a domingo. Coloquei ainda mais emendas lá, onde está a maioria da população do estado. Macapá é uma UTI social — disse Barreto.
Em nota, a prefeitura de Furlan atribuiu a votação expressiva no domingo à capacidade da atual gestão em transformar os recursos em melhorias na cidade. "Temos capacidade administrativa de receber recursos e aplicá-los em tempo hábil na entrega de obras que a cidade necessitava, desta forma a população validou a nossa capacidade de trabalho e entregas", diz.
Mas a aplicação dos recursos federais não contribui apenas para a eleição de prefeitos em grandes cidades. Entre os dez municípios que mais receberam emendas Pix nos últimos anos, Coração de Maria (BA), cidade de 22 mil habitantes a 111 quilômetros de Salvador, reelegeu o prefeito Kley Lima (Avante) com 67% dos votos. Entre os parlamentares que enviaram o recurso está o senador Angelo Coronel (PSD-BA), apoiador da reeleição de Lima. O prefeito e o parlamentar foram procurados, mas não se manifestaram.
Em algumas localidades,o parentesco do prefeito com o parlamentar ajudou a irrigar o cofre municipal. Foi o que aconteceu em Campo Formoso (BA), cidade de 71 mil habitantes a 477 quilômetros de Salvador, onde Elmo Nascimento (União) foi reeleito com 63,51%. Ele é irmão do deputado Elmar Nascimento (União-BA), que destinou R$ 19 milhões em emendas Pix para o município nos últimos dois anos.
— Temos um deputado que é um filho da terra e conhece as dificuldades e a pobreza do município. Mas a reeleição não foi fruto só de emenda, mas de uma dedicação de quatro anos. Não adianta receber e gastar mal — afirmou Elmo. Também procurado, Elmar não comentou.
Já em Nova Russas (CE), com população de 32,4 mil pessoas, a 338 quilômetros de Fortaleza, Giordanna Mano (PRD) foi reeleita com 83,53%. A prefeitura recebeu nos últimos quatro anos R$ 18 milhões da verba parlamentar, com R$ 14 milhões enviados diretamente do marido dela, o deputado Junior Mano (PL-CE). — Queria ter mais (emendas) para indicar — disse o parlamentar.
Boa gestão
A cientista política Graziella Testa, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), avalia que a reeleição dos gestores passa por um bom uso dos recursos recebidos. No entendimento dela, o problema das emendas vai além de uma eventual aplicação eleitoreira e inclui os critérios usados para escolher quais cidades vão receber.
— De repente a vida dessa pessoa melhorou mesmo por conta do recurso que veio da emenda parlamentar. A questão é como está a vida das outras pessoas que não receberam e como é feito essa divisão do que é prioridade do ponto de vista nacional— disse Testa.
Um exemplo de cidade contemplada com valores altos em emendas Pix, mas que o prefeito não conseguiu se reeleger é Belém, capital do Pará. O município recebeu R$ 23 milhões durante o mandato de Edmilson Rodrigues (PSOL), que não conseguiu a chegar ao segundo turno. Sua atual gestão ficou marcada por problemas no serviço de coleta de lixo, que derrubou sua aprovação.
A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, atribui o alto índice de reeleição dos prefeitos que mais receberam emendas Pix à forma como a verba é empregada. Segundo ele, como não há necessidade de o recurso ser vinculado a projeto, costumam ser empregadas em ações de baixa complexidade, como asfaltamento de ruas, compra de veículos ou ambulâncias, por exemplo.
— São ações que têm um impacto positivo na percepção do público sobre a gestão que está no poder. Por causa desse efeito, as emendas Pix acabam se convertendo em um financiamento eleitoral indireto, acentuando uma desigualdade na disputa que já existe normalmente no cenário de reeleição — afirmou a diretora do Transparência Brasil. (Colaboraram Karolini Bandeira e Lauriberto Pompeu)