Lula apela ao saudosismo e ignora onda da eleição
Por Vera Magalhães / O GLOBO
Quem ouviu o discurso do presidente Lula ontem, demonstrando enorme saudosismo em relação aos tempos bons do monopólio da Telebras nas telecomunicações e da Vale estatal, poderia se assustar e achar que inadvertidamente estava de volta aos anos 1990. Se o incauto fosse conferir o ano na internet, teria certeza, ao constatar que o assunto mundial era a volta da banda britânica Oasis.
Mas não. O ano ainda é 2024, o Consenso de Washington citado por Lula e o britpop que consagrou os irmãos Liam e Noel Gallagher fazem pouco sentido para além da nostalgia diante dos rumos da política e da música, e o presidente vai demonstrando notável descolamento da realidade cada vez mais complexa que se apresenta diante de governos e candidatos da esquerda, representada por ele no Brasil.
As dificuldades enfrentadas por candidatos do PT vão além da onda Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Levantamento do Pulso, do GLOBO, com base na última rodada de pesquisas Quaest, mostra que candidatos do PT largaram atrás mesmo em capitais importantes do Nordeste, região que assegurou a vitória de Lula em 2022.
Nos bastidores, ouve-se de auxiliares do presidente e de integrantes da campanha de Guilherme Boulos em São Paulo que, para Lula, o candidato do PSOL não precisa se preocupar com Marçal agora, uma vez que a ida ao segundo turno está assegurada e a briga está, por ora, no campo da direita.
Nada mais temerário e demonstrativo de cegueira diante da rápida reconfiguração do cenário paulistano. Marçal não parece concentrar seus apoios no campo que votou em Bolsonaro em 2022, e o eleitorado que votou em Lula ainda não se decidiu por Boulos (só 44% dos eleitores do presidente há dois anos declaram voto no psolista).
A aposta repetida por expoentes da campanha de Boulos — seria “mais fácil” enfrentar Marçal no segundo turno — também não leva em conta o que aconteceu com Fernando Haddad em 2016, quando perdeu a reeleição já no primeiro turno para João Doria, e em 2018, quando o PT deliberadamente “torceu” por Jair Bolsonaro no lugar do agora aliado Geraldo Alckmin no segundo turno. Deu no que deu.
Lula parece demorar a perceber que o objetivo de Marçal não é o Anhangabaú, sede da Prefeitura, mas o Palácio do Planalto. Isso fica claro na pressa com que já se coloca como o pós-Bolsonaro, a ponto de ter dito, na sabatina da GloboNews, que vencerá a eleição no primeiro turno e, então, se dispõe a “ajudar” Alexandre Ramagem.
A ficha caiu antes no clã Bolsonaro, que parece ter entendido com mais humildade o que está em jogo em seu próprio quintal — e, portanto, na própria polarização até aqui representada por lulismo e bolsonarismo. Não à toa, na mesma entrevista Marçal decretou a “aposentadoria” de Lula, evocando Joe Biden como exemplo.
Enquanto isso, em vez de comandar a estratégia da esquerda para se mostrar competitiva em eleições que serão prévia de 2026, Lula se põe a sonhar com o tempo em que havia orelhões de ficha pelas ruas e telefones fixos nas residências — e se sabia quem “era o presidente” da Vale. O que remanesceu da Telebras tem um presidente, mais um indicado do senador Davi Alcolumbre. Em que isso é melhor para o país ou para a economia? Em nada, absolutamente.
Esse discurso com cheiro de naftalina se soma à demora em reconhecer a fraude nas eleições da Venezuela, bem como o recrudescimento alarmante da violência da ditadura Maduro, para ir consolidando a imagem de que a esquerda envelheceu, e o novo vem por aí de boné, na velocidade das redes sociais. Quando alguém se der conta, o teleférico já subiu. Mas, pelo menos, alguém teve a supersacada de cantar o Hino Nacional em linguagem neutra.