Elogio ao cinismo
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Com um olho na própria reeleição e outro nas eleições municipais deste ano, o presidente Lula da Silva passou o fim de semana na ponte aérea ao lado de seus candidatos às prefeituras de São Paulo e do Rio de Janeiro. Nesse périplo eleitoreiro, os nomes apoiados por Lula – o paulista Guilherme Boulos (PSOL) e o carioca Eduardo Paes (PSD) –, as plateias do presidente nas duas cidades e, infelizmente, o restante do Brasil testemunharam, quase sem disfarces além do cinismo de praxe, a antecipação da campanha eleitoral. Pelo que faz e pelo que diz de maneira incontrolável – afinal, é sua natureza –, Lula desmoraliza o cargo que ocupa, o que não chega a surpreender.
Seria demais esperar que o petista respeitasse a lei que proíbe campanha eleitoral, posto que jamais desceu do palanque, mas não precisava desmoralizá-la de maneira tão acintosa.
Em São Paulo, num descarado comício no Jardim Ângela, com a presença de Boulos no palanque, Lula disse que iria assinar ali o contrato de financiamento da expansão do metrô para aquela região periférica da capital, mas não o fez porque nem o prefeito Ricardo Nunes nem o governador Tarcísio de Freitas aceitaram comparecer ao evento.
É possível imaginar as razões que levaram Nunes e Tarcísio a declinar do convite, já que nada ali se assemelhava a um evento oficial de governo. Era um ato de pura e simples campanha eleitoral, natureza que ficou clara quando Lula ironizou o prefeito e o governador, dizendo que, “quando a gente quer fazer investimento, quando a gente quer fazer crédito, a gente não se preocupa de que partido é o governador, a gente se preocupa se o povo daquele Estado, se o povo daquela cidade precisa das coisas que a gente faz”.
Já no Rio de Janeiro, Lula foi recebido de braços abertos por Paes, candidato à reeleição, despejando sobre o anfitrião fartos elogios e afirmando estar “diante do possível melhor gerente de prefeituras que este país já teve”.
Veteraníssimo de campanhas eleitorais, Lula conhece muito bem a lei. Até o início oficial da campanha, em 16 de agosto, não se pode pedir voto. No evento do 1.º de Maio, no entanto, Lula resolveu pedir votos para Boulos porque o comício havia sido um fracasso e era preciso criar um fato político para desviar a atenção. Ele sabia que seria multado pela Justiça Eleitoral, mas a multa, de tão irrisória, na prática se torna uma despesa de campanha como outra qualquer.
Não existe de fato um estímulo para que a lei seja cumprida, especialmente pelos partidos que andam com as burras cheias de dinheiro oriundo de generosos fundos públicos.
Mas a coisa vai além da mera desobediência. É puro escárnio. “Não posso falar o nome do Boulos, porque já fui multado uma vez”, disse Lula no Jardim Ângela, como se estivesse realmente preocupado com isso. Para deixar claro que não dava a mínima para a lei, permitiu que seu candidato discursasse em tom de triunfo, ao enaltecer a obra e a graça de “governos populares em São Paulo”.
No Rio, Paes também ironizou a impossibilidade de pedir votos, dizendo que não pode “pedir nada”.
Tudo isso mostra a evidente limitação da legislação eleitoral no contexto das pré-campanhas. São problemas que vão além do mecanismo da reeleição, como se constata ante o empenho de Lula para usar a máquina federal em favor de seus candidatos. O brasilianista Thomas Skidmore, no clássico livro Brasil de Getúlio a Castello, publicado na década de 1960, já descrevia assim os dilemas entre a gestão e a disputa eleitoral no País: “Só existe governo no Brasil durante a primeira metade do mandato presidencial – a outra metade é consumida elegendo o próximo presidente”.
Uma herança que se espraia uniformemente pelos mandatos de governos estaduais e prefeituras. E assim o presidente não apenas desabona o próprio papel, como converte a legislação que rege os limites da pré-campanha numa peça de ficção ou de cinismo – uns fingem que obedecem; outros fingem que fiscalizam e punem.