Volta da Venezuela à campanha eleitoral do Brasil era inevitável
No calor da campanha, os momentos mais importantes passam às vezes despercebidos. Dias antes da sua passagem no Jornal Nacional, Lula anunciou uma nova agenda diplomática ao defender que as "eleições sejam mais livres" na Venezuela. Uma mudança em relação ao posicionamento tradicional do seu partido de pregar o respeito das regras democráticas pelos governos venezuelanos.
Os dois eventos não podiam estar mais interligados. Em 2018, a acusação de tolerância do PT com o regime de Maduro serviu de argumento para muitos eleitores moderados anularem o voto quando precisaram escolher entre um apologista de Carlos Brilhante Ustra e um democrata. Lula optou por neutralizar um assunto que estava condenado a voltar nas últimas semanas da campanha.
Além do imperativo eleitoral, a mudança de posição sobre a Venezuela se articula em torno de duas premissas estratégicas. A primeira é a oportunidade proporcionada pelo fracasso da direita continental na gestão da crise na Venezuela na última meia década.
A tentativa de provocar uma queda de regime por meio de uma impostura, o reconhecimento internacional de Juan Guaidó, já entrou na história como a Baía dos Porcos do pós-Guerra Fria. A esquerda tem agora legitimidade para iniciar uma nova abordagem que privilegie uma solução regional para a crise venezuelana.
A segunda premissa é o evidente esgotamento do regime de Nicolás Maduro. A sua resistência às pressões externas e as mudanças geopolíticas provocadas pela Guerra da Ucrânia preservaram a sua autoridade. Mas ninguém acredita que ele tem condições de tirar sozinho a Venezuela da ruína em que se encontra depois um dos mais importantes êxodos da história latino-americana.
O candidato Lula também envia um sinal claro a futuros aliados. Ele se aproxima do posicionamento da nova esquerda chilena que se afastou do chavismo durante a campanha presidencial de Gabriel Boric. Ele abre o caminho para uma colaboração com Gustavo Petro na retomada das relações diplomáticas entre Bogotá e Caracas. Na relação com os Estados Unidos, o ex-presidente volta a se posicionar como um interlocutor útil na América Latina, num momento em que o governo Biden busca restaurar as suas alianças com países produtores de petróleo.
Por fim, Lula se impõe um primeiro teste de autoridade. Num eventual governo, a sua competência para levar o Brasil de novo para os grandes debates globais também será julgada pela sua capacidade de resolver os problemas imediatos na sua região. O avanço da diplomacia na Venezuela vai também legitimar o regresso de instituições emblemáticas do seu governo como a Unasul.
O debate sobre a Venezuela podia ser postergado, mas nunca ignorado. O país é uma potência da América Latina, e Hugo Chávez, uma referência difícil, mas incontornável da história global da esquerda neste século. A sua tragédia social assombra debates eleitorais na Espanha, França e Reino Unido e Estados Unidos. Todo projeto credível de união na América Latina e de sua reinserção no sistema internacional tem de começar pelo seu ponto mais sensível: dar um novo rumo à Venezuela.
Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC / FOLHA DE SP