O ‘meu’ representante político
Tem sido difícil para os moradores das grandes cidades brasileiras permanecer alheios à política das suas cidades. Todos ou quase todos temos uma posição a respeito das ações adotadas por prefeitos e vereadores em temas como trânsito (reduções de velocidade), uso do espaço público (arrastões nas praias do Rio de Janeiro, fechamento da Avenida Paulista aos domingos) e assistência social (“cracolândias”).
Espera-se que esse interesse da população se estenda ao longo deste ano, em que os eleitores escolherão seus representantes políticos nos municípios, incumbindo-os das decisões sobre os rumos da cidade. É o que decorre do primeiro artigo da nossa Carta Magna: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
A teoria é clara: nós, o povo, detemos o poder político e esse poder é exercido por nós mesmos ou, como ocorre na maioria das vezes, pelos representantes que elegemos. A atuação desses representantes deve se dar no interesse de todos (do povo), não só dos seus apoiadores – sejam eles seus eleitores, financiadores ou eventualmente seu partido.
A ideia de que os representantes políticos não devem representar interesses específicos, recebendo ordens de pessoas ou grupos organizados da sociedade, consolidou-se no século 18. É conhecido o trecho do discurso de Edmund Burke: “O Parlamento não é um congresso formado por embaixadores de interesses diferentes e hostis; interesses que cada um deve sustentar como agente e advogado contra outros agentes e advogados; o Parlamento é, sim, uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse, o do todo; que não se deve guiar por interesses locais, (...) mas pelo bem comum” (Discurso aos eleitores de Bristol, 1774).
A ideia é que o representante político representa toda a comunidade e deve ser livre para formar seu juízo sobre os interesses gerais dela sempre que tais interesses se apresentarem; interesses que deverão sobrepor-se aos seus ou dos seus correligionários em caso de conflito.
A representação política, em suma, deve ser exercida por meio de um mandato “livre”, em oposição a um mandato “vinculado” (a instruções ou ratificações de seus apoiadores).
Deixemos de lado a integridade dessa ideia no âmbito das democracias de massa e seu entorno sociopolítico. Reconheçamos, simplesmente, que muitos dos nossos representantes políticos mal se perguntam sobre interesses gerais quando estão diante de interesses específicos, sejam eles estritamente individuais, de seus financiadores ou, se isso for identificável, de seus eleitores. E a razão para tanto não é apenas – ou, a julgar pelo noticiário recente, raramente é – a dificuldade de precisar interesses “gerais” nem a eventual coincidência entre esses interesses e a posição do representante.
Desse cenário, porém, também emerge uma pergunta: nós, eleitores, muitas vezes não buscamos um representante que represente, preferencialmente, nossos interesses mais claros e imediatos (por mais ou menos “gerais” que sejam)?
Se perguntássemos a um taxista de São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, “de esquerda” ou “de direita”, se ele votaria num candidato a vereador de ideologia oposta caso o tal candidato lhe parecesse o mais capaz de se opor ao Uber, qual seria a resposta dele?
E se adaptássemos essa hipótese a outras situações caras a nós? Não seria possível que votássemos num candidato mais empenhado na defesa dos nossos interesses preferenciais, mesmo diante de outros candidatos com uma visão de mundo mais próxima da nossa? Ou que votássemos num candidato mais empenhado na defesa dos nossos interesses preferenciais, mesmo diante de outros candidatos com prioridades que nós mesmos julgamos mais relevantes para a nossa cidade, o nosso Estado ou país?
Nesses termos, compreende-se a fragilidade (ou uma das fragilidades) da ideia de um mandato “livre”, voltado prioritariamente para os interesses gerais da comunidade – e não para os interesses específicos de alguns de seus grupos, como no mandato “imperativo”.
Nas certeiras palavras do filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, “a verdade é que a escassa eficácia da proibição de mandato imperativo, objeto de uma recorrente lamentação dos observadores políticos, sempre derivou do interesse recíproco, tanto dos eleitores quanto dos eleitos, em violá-la” (Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos, página 464).
Ou até mais do que isso. Recordemos as últimas pesquisas acerca da percepção dos cidadãos brasileiros sobre a democracia e seus atores institucionais. Em levantamento feito pelo Datafolha em outubro de 2015, 71% dos eleitores paulistanos afirmaram não ter preferência por nenhum dos 35 partidos existentes. É a taxa mais alta já registrada pelo instituto, que acompanha o tema desde 1985.
Já na pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência em setembro de 2015, somente 15% dos brasileiros acima de 16 anos se disseram satisfeitos com o funcionamento da democracia no Brasil. Trata-se do nível mais baixo já registrado pelo instituto (desde 2008).
Se não é só uma coincidência que essa insatisfação recorde com a democracia coincida com o período de sensível decréscimo econômico e social em que vivemos, a conclusão é de que muitos de nós apoiamos a democracia não tanto porque ela inclui um número amplo de pessoas e contém regras e procedimentos razoáveis, claros e estáveis. Talvez esse apoio se meça, em boa medida, pelos ganhos econômicos e sociais que ela traz, ou achamos que traz, a cada um de nós. A democracia seria boa enquanto um “bom negócio”.
* MARCELO DE AZEVEDO GRANATO É DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO (ITÁLIA), JUIZ DO TRIBUNAL DE IMPOSTOS ETAXAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, PROFESSOR E ADVOGADO / O ESTADO DE SP