Mansueto Almeida: “Governo de esquerda também pode privatizar”
O economista afirma que governos interessados em fazer gastos sociais, como em educação e saúde, têm de ser os mais responsáveis com as contas públicas
Mansueto Almeida considera-se um economista de esquerda – afinal, acha que o Estado tem papel importante na distribuição de renda. Além disso, colabora com outros pesquisadores brasileiros para aferir resultados de políticas sociais adotadas em outros grandes países em desenvolvimento. Mesmo assim, tem amigos que o consideram de direita. “Eles acham que sou de direita, eu pendo mais à esquerda, e não vejo problema nenhum nisso”, diz, rindo. Mansueto é rotulado como “de direita” por ser crítico contumaz da gastança de verba pública para incentivar grandes empresas brasileiras. A prática ganhou força no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, sob pretexto de combater os efeitos da crise econômica global de 2008, e disparou no primeiro governo de Dilma Rousseff. Mansueto associa essa visão à “esquerda atrasada da década de 1950”. Ela obstrui o crescimento econômico e prejudica a inclusão social dos mais pobres. E se opõe aos ideais social-democratas de países avançados, como o Reino Unido, onde se sabe que investir mais num sistema universal de saúde exige que o governo atente para os limites do orçamento e deixe de gastar em alguma outra coisa. Esse tipo de discussão, que tem como pilar a responsabilidade fiscal, é distorcido e mal interpretado no Brasil.
ÉPOCA – Nossa atual Constituição é de esquerda?
Mansueto Almeida – Nossa Constituição é muito mais de esquerda, pois tem uma preocupação em prover um Estado de bem-estar social. No governo FHC, quando você tem o Plano Real no primeiro mandato e as reformas estruturais no segundo, a agenda social foi muito forte. A Constituição estabelece, por exemplo, um Sistema Único de Saúde com atendimento integral, universal e gratuito. Nossa Constituição tem claramente essa agenda de esquerda, de bem-estar social. Entretanto, há também uma segunda agenda, baseada não no pensamento de esquerda, mas sim na agenda do nacional desenvolvimentismo da década de 1970 pautada pelos militares. Isso começou com menos força em 2004 no governo Lula, com uma política industrial que respeitou a restrição orçamentária. A partir de 2008, houve o crescimento de uma agenda intervencionista com uma política setorial de subsídios. O Estado passou a manter recursos tanto para a agenda social quanto para a setorial. Em países como a China, por exemplo, se faz política setorial, mas com pouca política social. Por gastar tanto com o social, financiado com o orçamento, o Brasil não tem recursos para o setorial.
ÉPOCA – Essa rede de proteção social inexistia antes de 1988?
Almeida – Praticamente inexistia. Até 1988, havia restrições, como a aposentadoria rural, que não era tão simples de conseguir. Os gastos com educação e saúde também eram muito limitados. Na década de 1970, só acessava a saúde pública quem tinha Carteira de Trabalho. Isso mudou. A rede de assistência social ampla que vemos hoje é algo surgido apenas após a Constituição.
ÉPOCA – Como a crise de 2008 mudou o perfil do governo?
Almeida – Do ponto de vista social, não houve mudanças, pois houve uma continuidade do que já vinha sendo feito nos gastos sociais. As agravantes foram as políticas setoriais atreladas ao aumento de conteúdo (industrial) nacional, como buscar desenvolver a cadeia da indústria naval e dar subsídios ao setor automobilístico. Toda essa agenda nacionalista com foco na indústria tem apoiadores de direita e de esquerda. Quem defende essa agenda, por exemplo, são os empresários.
ÉPOCA – Por que o debate entre esquerda e direita no Brasil é tão diferente do travado nas democracias avançadas?
Almeida – Há um problema de falta de informação. É um debate em que os partidos que eram identificados com a esquerda e defendiam o social também são os defensores dessa agenda intervencionista.
ÉPOCA – O debate nacional desenvolvimentista distorce o debate de direita e esquerda no Brasil?
Almeida – O governo tem o direito de fazer política industrial. Vários governos fazem e em alguns casos têm até recursos específicos para isso. A questão é o exagero que se fez no aumento do endividamento por meio de um pensamento de “quanto mais subsídios, maior o retorno”. Isso deixou uma dívida grande que não conseguirá ser paga em décadas. Os empréstimos para o BNDES, por exemplo, que correspondem a 10% do PIB, só vão começar a retornar para o Tesouro em 2040. Os erros dos últimos anos que levaram ao crescimento da dívida bruta foram erros de política econômica, e não problemas de estrutura. Essa situação de desequilíbrio do deficit primário aconteceu porque o governo gastou muito mais do que podia, criou vários novos programas e expandiu a dívida para dar subsídios.
ÉPOCA – É o que ocorreu no primeiro governo de Dilma Rousseff?
Almeida – O primeiro governo Dilma tentou fazer agenda social, mas ao mesmo tempo pegou uma agenda de incentivo que não cabia no orçamento do Estado, prejudicando o social. O salário mínimo real, por exemplo, cresceu 150% entre 1995 e 2013. Agora, nos próximos anos, esse crescimento real será próximo de zero, mesmo na regra atual.
ÉPOCA – Quem se beneficia com uma política de responsabilidade nas contas públicas?
Almeida – Todos se beneficiam. Se um país tem maior responsabilidade fiscal e a dívida e os juros estão caindo, temos várias benesses. Se a inflação está em níveis razoáveis, a tendência é os juros ficarem menores em longo prazo. Com essa segurança, o país fica mais bem posicionado para atrair dinheiro externo. Quem consegue controlar a dívida e fazer uma economia fiscal razoável beneficia tanto a esquerda quanto a direita, pois o clima de negócios vai ser melhor, os juros serão menores e vai haver mais espaço para expandir outros programas, como foi o caso do primeiro governo Lula. O problema hoje é que a tentativa de ajuste fiscal não tem conseguido nem entregar o que prometeu. Quando comparamos com o ano passado, o ajuste fiscal diminuiu. A economia no primeiro semestre deste ano foi muito menor do que no primeiro semestre do ano passado. No primeiro semestre do ano passado o superavit primário (o saldo das contas do governo, antes do pagamento de juros) foi de R$ 19 bilhões. Neste ano, foi de apenas R$ 1 bilhão.
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ÉPOCA – Por que as privatizações no Brasil são consideradas de direita?
Almeida – Acho que essa distorção piora o debate. Se você privatiza um serviço que tem uma tarifa com que os pobres não conseguem arcar, então você deve subsidiar o acesso dos pobres ao serviço. Há uma visão muito velha da esquerda ligada ao socialismo quando você diz, por exemplo, que o Estado tem de ser o dono das comunicações ou dos portos. Uma visão da década de 1950, relacionada à propriedade dos meios de produção. Querer ter um discurso de esquerda como esse é um grande equívoco hoje. E aí vem a crítica à privatização. O que importa para o Estado é ter o dinheiro para gastar com áreas essenciais como saúde, educação e distribuição de renda. Isso vai depender da capacidade do Estado de tributar. Na Venezuela, todas as companhias internacionais de petróleo foram expulsas, e com isso a produção caiu e o Estado não teve receita para financiar os programas sociais. Uma saída que poderia ter sido adotada era não a estatização delas, e sim a taxação, mais alta. Essa visão de esquerda atrasada que se manifesta principalmente na Argentina e na Venezuela é uma agenda que não leva ao desenvolvimento. Na Inglaterra, o debate está dizendo que determinados programas não essenciais devem ser cortados e outros não. A saúde lá é pública e é mais universal do que no Brasil. O orçamento para eles é tão importante que não se estabelece uma regra de gastos. Se pensa muito mais em responsabilidade fiscal do que aqui.
ÉPOCA – O senhor é de esquerda ou de direita?
Almeida – Eu me considero mais de esquerda do que de direita, pois acredito muito que é papel do Estado fazer distribuição de renda. Políticas de educação básica e incentivo ao ensino fundamental e médio são papel do Estado, e ele precisa fazer o melhor possível nessas duas áreas. Apesar de me considerar um cara de centro-esquerda, eu não comungo com essa agenda de incentivar muitos setores a fechar os olhos para o equilíbrio fiscal. Somos um país emergente e ainda temos de ser muito responsáveis no trato dos recursos públicos. A agenda de esquerda brasileira tem dificuldades de entender essa ideia. Muitas vezes essa esquerda quer aumentar os gastos, mas não quer fazer reformas da previdência ou discutir quem vai pagar a conta.