O ministro que melhor convém
As notícias dos últimos dias focaram-se no recebimento da denúncia por crime de responsabilidade pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, com a consequente deflagração do processo de impeachment (da presidente da República), bem como nas estratégias e ações arquitetadas pelo Planalto para tentar barrar o processo.
Como parte do plano estratégico, segundo declarou à imprensa o ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, seria intentado mandado de segurança (no STF) visando a anular o recebimento da denúncia por Cunha, sob o argumento de “abuso de poder”, visto que sua decisão fora, supostamente, motivada por revanchismo.
A ação, encampada pelos deputados petistas Paulo Teixeira (SP), Paulo Pimenta (RS) e Wadih Damous (RJ), acabou proposta às 16 horas de quinta-feira 3/12, sendo registrada como MS 33921 e distribuída à relatoria do ministro Gilmar Mendes pouco menos de 20 minutos depois.
Vale esclarecer que, conforme previsto pelo artigo 548 do Código de Processo Civil (CPC), combinado com o artigo 66 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), a referida ação foi regularmente distribuída por sorteio eletrônico aleatório.
Acontece que, para a surpresa de muitos, em especial de advogados processualistas como nós, cerca de uma hora depois da distribuição (às 17h23) foi protocolado pedido de desistência da demanda, requerendo que ela fosse extinta sem julgamento do mérito na forma do artigo 267, VIII, do CPC.
O pedido de desistência, embora possível e previsto em lei, foi maculado por duas falhas. A primeira, de ordem formal, visto que não se observou o disposto no artigo 38 da lei processual (que lista alguns atos que só podem ser praticados pelo advogado quando expressamente descritos na procuração a ele outorgada), pois o pedido foi subscrito por advogado que não tinha procuração com poderes específicos para desistir do feito, como bem observou o ministro Gilmar Mendes ao indeferir o requerimento.
A segunda falha foi de ordem estratégica, pois, conforme noticiado pela imprensa, o requerimento de desistência teria sido motivado pelas recentes decisões desfavoráveis ao governo proferidas pelo mesmo ministro do Supremo. Assim, desistir-se-ia do pedido para intentar uma nova ação que, pela regra geral do sorteio aleatório, poderia ser distribuída a outro ministro que tivesse entendimentos mais favoráveis aos interesses do Palácio do Planalto.
Muito embora a regra geral seja o sorteio, o artigo 253 do CPC, prevê algumas situações em que a distribuição é feita por dependência, ou seja, o novo processo deve ser distribuído ao mesmo magistrado designado para o processo anteriormente distribuído a que se relaciona. É a chamada prevenção que, em linhas gerais, visa a impedir a prolação de decisões conflitantes, bem como que haja manipulação do sistema de distribuição por sorteio. Tais hipóteses objetivam justamente que a ausência de coisa julgada material – isto é, a inexistência de decisão acerca do mérito da causa – sirva de artifício para que os autores tentem escolher o juiz que melhor lhes aproveita, burlando o princípio constitucional do juiz natural.
Uma dessas situações abarca a distribuição de novo mandado de segurança processualmente similar (com o mesmo pedido, coincidência de parte dos autores e de alguma das autoridades coatoras), o que ensejaria nova designação do ministro Gilmar Mendes, pois, a regra do artigo 253, II, do CPC prevê que os processos serão assim distribuídos “quando, tendo sido extinto o processo, sem julgamento de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda”. Ou seja, em síntese, caso a ação fosse repetida (após a desistência da anterior) não haveria novo sorteio.
Outra hipótese de distribuição por dependência, contida no inciso I do artigo 253 do CPC, é a relativa às ações conexas (“quando lhes for comum o objeto ou causa de pedir”, artigo 103 do CPC) ou continentes (quando houver “identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abranger o das outras”, artigo 104 do CPC). Tal hipótese também é abarcada pelo artigo 69 do RISTF, no qual está previsto que “a distribuição da ação ou do recurso gera prevenção para todos os processos vinculados por conexão ou continência”. Portanto, analisando isoladamente esses dispositivos, mesmo nova ação proposta por autores absolutamente diversos seria direcionada ao ministro Gilmar Mendes.
Todavia o supracitado artigo 69 do RISTF aponta em seu § 2.º que “não se caracterizará prevenção, se o Relator, sem ter apreciado liminar, nem o mérito da causa, não conhecer do pedido, declinar da competência, ou homologar pedido de desistência por decisão transitada em julgado”, de tal modo que, se o magistrado homologar o requerimento de desistência sem apreciar o pedido liminar ou o mérito da causa, não haverá prevenção.
Logo, ainda que ética e moralmente contestável, seria processualmente possível buscar a designação de outro ministro relator caso fosse impetrada nova ação, com autores completamente distintos, após o trânsito em julgado da homologação do pedido de desistência da ação atual.
Acontece que, diante da impossibilidade de acolher o pedido de desistência da lide, visto que o advogado que subscreveu o pedido não estava formalmente autorizado por seus constituintes a fazê-lo, restou ao ministro Gilmar Mendes apreciar a medida liminar pleiteada na ação (que acabou indeferida), tornando-o, por conseguinte, prevento para demandas conexas posteriores e, indiretamente, levando ao fracasso a duvidosa manobra processual do governo.
No caso em tela, portanto, terá o Planalto de se contentar com os princípios constitucionais do devido processo legal e do juiz natural, ambos devidamente abrigados na relatoria do ministro Gilmar Mendes.
* MARIA VALÉRIA MIELOTTI CARAFIZI E WALDEMAR MARIZ DE OLIVEIRA NETO SÃO SÓCIOS FUNDADORES DA MARIZ DE OLIVEIRA & MIELOTTI CARAFIZI SOCIEDADE DE ADVOGADOS / O ESTADO DE SÃO PAULO