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A escalada da desfaçatez

O ESTADÃO DE SP

 

A Polícia Federal (PF) cumpriu no dia 11 passado uma nova etapa da Operação Última Milha, que investiga a transformação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em um aparato clandestino de espionagem durante o governo de Jair Bolsonaro.

 

Esse desdobramento da operação não trouxe muitas novidades sobre o caso, que já é objeto de investigação desde o início deste ano (ver o editorial Um arremedo de SNI, de 27/1/2024). A principal revelação da PF foi a existência de uma gravação, cujo teor não foi divulgado, da conversa em que Bolsonaro teria autorizado, em agosto de 2020, que a Abin servisse como espécie de órgão auxiliar da equipe de defesa de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), no caso das “rachadinhas”.

 

A julgar por esse novo achado dos investigadores, a grave suspeita de que Bolsonaro agiu contra a Constituição, as leis e o interesse nacional enquanto presidente da República – ao espionar autoridades dos Poderes Legislativo e Judiciário, entre outros – caminha para ganhar a materialidade que pode comprometer ainda mais o seu destino jurídico-penal no futuro próximo.

 

O fato de Bolsonaro ter se apoderado da Abin para fazê-la seu aparelho particular de bisbilhotagem de autoridades, adversários políticos e jornalistas, prática típica de um Estado autoritário, não surpreende. Afinal, o ex-presidente jamais escondeu a sua índole liberticida e sua intolerância a críticas e divergências. Ademais, a própria PF já havia revelado como a Abin usou indevidamente o sistema FirstMile, que permite a geolocalização de celulares, para invadir a privacidade de quaisquer pessoas tidas como inimigas por Bolsonaro e seus acólitos.

 

Segundo a PF, Bolsonaro, Flávio, uma das advogadas do senador, o então diretor da Abin, Alexandre Ramagem, e o então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, teriam discutido naquela fatídica reunião meios de empregar os recursos humanos e tecnológicos da agência para “descobrir podres” dos auditores da Receita Federal responsáveis pelo relatório de inteligência financeira que implicou Flávio no esquema das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – revelado por este jornal no fim de 2018.

 

De acordo com o relatório da autoridade policial, “a premissa investigativa (o aparelhamento da Abin para fins particulares) é corroborada por áudio no qual Jair Bolsonaro, o general Heleno e, possivelmente, a advogada de Flávio Bolsonaro tratam sobre as supostas irregularidades cometidas por auditores da Receita”. O objetivo, como fica claro, era usar um órgão, que deveria servir à instituição da Presidência da República, para desqualificar o trabalho de servidores públicos que ousaram apontar movimentações financeiras suspeitas de um dos filhos do então incumbente. É estarrecedor.

 

Ainda segundo a PF, a gravação da conversa teria sido realizada de forma sorrateira pelo próprio Ramagem, sem o conhecimento de Bolsonaro e dos demais interlocutores. Ora, com que objetivos o então diretor da Abin gravou ninguém menos que o presidente da República? Fosse republicana aquela conversa, decerto não haveria razão para o registro clandestino. De boa coisa, Ramagem sabia que não se tratava.

 

Consta que Bolsonaro teria ficado “furioso” ao saber que seu pupilo, o “poste” que ele ungiu como seu candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, o teria gravado. Ora, é isso o que acontece quando um governante se presta a exigir que agentes públicos se comportem fora da lei para atender a seus desígnios particulares. Sem freios morais, uma vez rompida a barreira legal, nada há de impedir que aqueles que se julgam acima do bem e do mal façam o que bem entender para impor seus objetivos políticos.

 

Tudo isso é gravíssimo e impõe o prosseguimento da investigação de forma técnica, a fim de levar à punição de todos os responsáveis. Por sorte, a espionagem bolsonarista levada a cabo pela Abin foi trabalho de amadores. Se a competência dos liberticidas estivesse à altura de suas más intenções, o Brasil estaria perdido.

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