Tropas americanas desembarcam na Amazônia e comandantes de 22 exércitos, no Rio: entenda o motivo
Por Marcelo Godoy / O ESTADÃO E SP
Era 19 de outubro quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou a entrada de 294 militares americanos no Brasil. Integrantes do Exército do Sul, da 101.ª Divisão Aerotransportada, do 7.º Grupo de Forças Especiais, além da Guarda Nacional de Nova York participam de mais um exercício de combinado – o CORE 23/Southern Vanguard 24 – e desembarcaram no Pará para realizar treinamentos e exercícios ali e no Amapá com cerca de 1,2 mil militares brasileiros da 23.ª Brigada de Infantaria de Selva.
Em Belém, os militares americanos fizeram um estágio de combate e sobrevivência na selva , encerrado no sábado, e devem embarcar hoje para o Amapá. De acordo com a embaixada americana no Brasil, este é um “exercício anual, planejado e dirigido pelo Exército Sul dos Estados Unidos, e patrocinado pelo Comando Sul dos EUA (Southcom)”. “Ele é realizado em níveis operacionais e táticos, com o objetivo de aumentar a interoperabilidade entre as forças dos EUA e do Hemisfério Ocidental e, neste caso, com o Brasil.”
Na mesma nota divulgada no dia 30, a embaixada americana informou: “Exercícios como esse são planejados com anos de antecedência e não estão relacionados a nenhum evento do mundo real”. No dia 1º de novembro, o blog do Exército republicava uma entrevista do comandante militar do Norte, o general Luciano Guilherme Cabral Pinheiro, ao qual a 23ª Brigada está subordinada. Disse o general: “A diplomacia militar é uma ferramenta crucial para a prevenção de conflitos e para a construção de uma comunidade internacional mais segura e estável”.
Havia um temor no Exército e entre os americanos que o exercício fosse explorado por setores de partidos de esquerda para mais uma vez expor o que seriam as diferenças da diplomacia do Itamaraty e aquela praticada pelas Forças Armadas. Ainda mais depois que, no dia 2 de novembro, a general Laura Richardson, do Southcom, voltou a criticar a presença chinesa na América Latina, alertando mais uma vez para o que ela chama de ameaça para a democracia durante uma entrevista no Gordon Institute da Florida International University.
É nesse inescapável contexto que os exercícios militares na Amazônia vão se desenvolver com o objetivo, segundo o general Guilherme, de “ampliar a interoperabilidade com o Exército dos Estados Unidos da América e forças compostas por países integrantes da OTAN”. Para ele, a atividade deve assegurar a “capacitação do Exército Brasileiro para participar de operações internacionais, de acordo com os interesses nacionais e os compromissos internacionais assumidos pelo País”.
Ainda de acordo com o general, “a maior novidade” no CORE 23 “é o ambiente operacional, que se caracteriza por possuir grupos específicos que devem ser considerados, como exemplo, a presença predominante de grupos indígenas”. Regiões com grandes vazios demográficos e áreas de selva inabitada, nas quais o transporte fluvial predomina, são ambientes propícios para o deslocamento de tropas aeromóveis, como a da 101.ª Divisão Aerotransportada americana.
A general Richardson não estará em Belém, Macapá e Oiapoque. Mas o general Andrew P. Poppas, do U.S. Army Forces Command (Forscom), deve passar por lá antes de chegar à Conferência de Comandantes dos Exércitos Americanos (CCEA), no Rio. Presidida pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, a conferência reunirá delegações de 22 países das Américas, além de Espanha e de Portugal.
Mais uma vez, a pauta será “integração”. Para os generais brasileiros, é notório que os americanos estão preocupados em ocupar espaço na região. Enviaram à conferência um general quatro estrelas responsável pelo maior comando do Exército dos Estados Unidos, fornecedor de forças terrestres expedicionárias, regionalmente engajadas. Para militares brasileiros ouvidos pela coluna, o crescente aumento da participação chinesa na América do Sul está tirando o sono dos americanos.
É verdade que os exercícios com os brasileiros são anuais, portanto, programados há muito tempo. Eles fazem parte de relações bilaterais, que envolvem ainda ações com outras Forças estrangeiras. Para os militares brasileiros, os exercícios e a conferência são oportunidades para, como disse o general Guilherme, “demonstrar sua capacidade de cooperação, o que fortalece a diplomacia militar do Brasil e a promoção da confiança mútua entre forças armadas de diferentes nações”.
Para Lula, é uma rara oportunidade de se mostrar pragmático. No primeiro semestre, quando o Comando de Operações Terrestres (COTer) convidou exércitos das Américas e da Europa para uma seminário sobre doutrina militar, imediatamente teve a iniciativa bombardeada por setores do PT que viram nela um desafio à política de neutralidade defendida pelo Itamaraty em relação às disputas entre China, Rússia e EUA. E logo o Exército se viu obrigado a estender seu convite ao exército chinês.
Durante a proposta de venda de blindados Guarani na versão ambulância para Ucrânia, interesses distintos também se chocaram: a Defesa era favorável ao negócio de R$ 3,2 bilhões e o Itamaraty, contra. Lula deu razão então aos seus diplomatas. “Era uma decisão que cabia ao presidente”, disse então o general Tomás. Agora que os olhos americanos se voltam para cada canto do globo onde os chineses podem fincar novos entrepostos de sua nova rota da seda, Lula mantém canais abertos com os Estados Unidos e com a França.
Ali, perto do Amapá, os militares brasileiros estão acostumados a fazer exercícios conjuntos com o 3.º Regimento de Infantaria Estrangeira (3.º REI), aquartelado na Guiana – o último foi em março. Os exercícios com americanos na Amazônia vão até o dia 16, enquanto a conferência ocorre até o dia 9, quando o Brasil passa a sua presidência para o México.
No horizonte não há sinal de exercícios conjuntos com os chineses, dez anos depois de o general Liang Guanglie, então ministro da Defesa da República Popular da China, ter proposto exercícios entre as Forças Aéreas dos dois países. As barreiras doutrinárias, de idioma e logísticas ainda são enormes. Para não falar do custo financeiro em uma ação que misturaria interesses diplomáticos com uma ação militar que deveria mirar sobretudo objetivos tático-operacionais. A general Richardson pode ficar tranquila.