Lula rasga a fantasia que nunca esteve muito disposto a vestir
Por Renata Agostini / O ESTADÃO DE SP
Foi na saideira, quando assessores do presidente já pediam para encerrar a entrevista, que Lula decidiu falar sobre a meta fiscal. Mais especificamente sobre a sua má vontade com o objetivo de chegar ao déficit zero em 2024.
O presidente não tergiversou sobre o motivo: ele não quer cortar gastos. De acordo com o raciocínio de Lula, há de se pensar no melhor para o país. E falar em controle de despesas é coisa do “mercado ganancioso”.
O problema é que a tal meta foi estabelecida pelo seu ministro da Fazenda com aval presidencial. Uma forma de acalmar investidores, trazer alguma perspectiva de esforço para controlar a trajetória da dívida pública e abrir espaço para o início da queda dos juros — principal problema a ser enfrentado, de acordo com diversas declarações do mesmo Lula ao longo do ano.
Há sempre duas formas de se abordar o ajuste fiscal. Pelo lado das despesas, cortando gastos até que eles encontrem o patamar das receitas. Ou pelo lado das receitas, aumentando as arrecadação de forma que ela dê conta dos gastos programados.
Como Lula nunca quis realmente controlar despesa alguma, restou ao seu ministro da Fazenda bolar um plano altamente dependente do aumento das receitas para tirar as contas do país do vermelho. Era preciso conciliar a vida real da economia ao desejo do seu campo político — e do seu chefe.
E aí veio o enrosco. Para colocar o projeto de pé, seria preciso aprovar um caminhão de leis complexas no Congresso. Para conseguir passar essas propostas, o governo teria de aumentar o seu apoio no Legislativo. Para ter base, Lula teria de acenar com cargos. Ele assim o fez e o Centrão então veio, prometendo ajudar em votações — mas nem todas — e cobrando pela liberação de emendas e recursos — leia-se mais gastos. Não nos esqueçamos que, ano que vem, é tempo de eleição.
Fernando Haddad e seu time já tinham feito as contas. Não ia dar para entregar o tal déficit zero. No mínimo, seria um trabalho dos mais duros pelas resistências e prazo curto para que tudo fosse votado. O prognóstico era ruim, mas a ideia era perder lutando.
Haddad pretendia usar a promessa da meta e o compromisso do governo em persegui-la para pressionar o parlamento a correr. Foi com esse espírito que o ministro esteve com Arthur Lira na última semana, pedindo pressa em votações e sugerindo atalhos para que as novas regras começassem a valer já no início do ano que vem.
A estratégia da equipe econômica ao longo do ano foi enviar projetos em série ao Congresso, buscando janelas para aprovar o que fosse possível. A jogada é manjada em Brasília: mira-se no aparentemente inalcançável para que se saia com, ao menos, alguma coisa em mãos. Mas, a dois meses do fim do ano, Haddad e seu time anteviam tempos duros e trabalham numa forma de atenuar o discurso, já que a meta de déficit zero parecia cada vez mais improvável. Aí veio Lula deixando claro que, em essência, nunca acreditou no plano do seu ministro.
É que, se o plano de passar projetos e elevar a arrecadação não desse certo, seria preciso bloquear despesas já no início do ano que vem — o chamado contingenciamento. Não precisava ser analista político dos mais astutos para antever que a ambiciosa agenda de mudanças na tributação poderia empacar no Congresso.
Antes mesmo de Haddad tentar a última investida, no entanto, Lula tratou de desarmar qualquer possível pressão em cima dos parlamentares. Se nem o presidente acha que é fundamental zerar o déficit, por que o Legislativo deve se preocupar?
Investidores, banqueiros e analistas poderiam levantar o cartaz do “eu já sabia”. O mercado nunca achou crível zerar o déficit público no ano que vem. Mas viu que o resultado ao fim pode ser pior do que se imaginava. É como gostava de dizer meu avô: de onde menos não se espera… aí que não sai nada mesmo.