Cúpula do Congresso concentra poder inédito e cria desafios para primeiro ano de Lula 3
Por André Shalders e Daniel Weterman / o estadão de sp
Alterações no funcionamento do Legislativo nos últimos anos mostram que os comandantes atuais do Congresso Nacional têm mais força do que seus antecessores para travar – ou fazer andar – a agenda de votações. Inovações que começaram com a pandemia de covid-19 representam hoje um desafio extra para o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O chefe do Executivo tem que lidar não só com um Congresso fortalecido em relação aos outros Poderes, mas também com uma cúpula que concentra bem mais poderes nos presidentes da Câmara e do Senado em comparação aos antecessores.
O Estadão vai mostrar, em uma série de reportagens, o funcionamento de mecanismos que deram à cúpula do Congresso um poder inédito. O cenário passa pelo uso político das sessões híbridas, que admitem a participação via internet; a diminuição dos instrumentos da minoria para obstruir votações; a substituição das comissões permanentes por “grupos de trabalho” informais ou comissões especiais; e o uso de pedidos de urgência, entre outras ferramentas.
O fenômeno é mais intenso na Câmara dos Deputados, mas acontece também no Senado. “São dois processos concomitantes. Um deles é o fortalecimento do Legislativo em relação aos outros poderes. E o outro é o de centralização (das decisões) na Câmara dos Deputados. No Senado, o processo ocorre residualmente, mas na Câmara isso tem um impacto maior”, diz Graziella Testa, que é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Escola de Políticas Públicas e Governo (EPPG) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A especialista diz ainda que o grande número de partidos – são 23 legendas na Câmara – pode ser uma das causas da concentração de poderes na figura do presidente. “Quando você tem poucos partidos com poder relevante, é mais fácil que esses tenham uma participação efetiva junto ao presidente da Mesa”, diz ela. Testa prepara atualmente um capítulo de um livro sobre o tema.
Sessões online viraram ferramenta política
Na Câmara, o processo começa com um ato da Mesa (o de nº 123 de 2020) que disciplinou a realização de sessões online, em função da chegada da Covid-19 ao Brasil. “Nesse ato, que determinava como iam ser as sessões remotas, já havia um grande cerceamento desses instrumentos de obstrução da minoria no Plenário”, diz Testa.
Quase dois anos depois, em março do ano passado, outro Ato da Mesa (o 227 de 2022) tornou definitiva a solução temporária, sob o nome de Sistema de Deliberação Remota (SDR). O único critério para decidir se a sessão será online ou não é a vontade do presidente.
Como explica Testa, a possibilidade de usar sessões híbridas “se tornou uma nova opção na caixa de ferramentas do presidente da Câmara”: ela facilita a votação de projetos nos quais há interesse, mesmo que os deputados estejam fora de Brasília. Isso torna quase impossível à oposição derrubar uma votação por falta de quórum. “Com a sessão híbrida, isso desaparece. Porque o custo para o parlamentar participar da sessão fica praticamente zero. Ele (deputado) só precisa de um celular com internet”, diz Testa.
Congresso tem poder maior nas leis aprovadas e no orçamento
A concentração de poder da cúpula do Congresso coincide com o aumento de poder do Legislativo sobre o Executivo, muito maior do que o experimentado por Lula nos mandatos anteriores. Em 2003, quando Lula assumiu a Presidência pela primeira vez, o petista conseguiu aprovar 54 medidas provisórias e não perdeu nenhuma. Neste ano, 17 já perderam a validade e apenas sete foram aprovadas.
No primeiro ano do primeiro mandato, 28% dos projetos que viraram lei foram de autoria do presidente da República. Neste ano, até o dia 23 de outubro, o porcentual é menor, de 18%. No orçamento, o Executivo controlava toda a despesa do governo federal. Agora, convive com um Congresso dominando 18% dos gastos não obrigatórios por meio das emendas parlamentares.
Além das emendas, o governo Lula entregou parte do primeiro escalão para a cúpula do Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou o deputado André Fufuca (PP-MA), para comandar o Ministério do Esporte e Celso Sabino (União-PA) como ministro do Turismo. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), por sua vez, tem dois aliados diretos na Esplanada: o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD-MG), e o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT).
Redução das ferramentas da minoria
No jargão do Congresso, o “kit obstrução” é uma série de manobras regimentais das quais a oposição pode lançar mão para tentar impedir uma votação de acontecer. A minoria pode, por exemplo, pedir a “verificação de quórum”; demandar a votação de sucessivos requerimentos de retirada de pauta, etc. Em maio de 2021, já sob Arthur Lira (PP-AL), a Câmara aprovou uma Resolução (a 21 de 2021) limitando severamente esses instrumentos do “kit obstrução”.
Crítica do atual comando da Casa, a deputada Adriana Ventura (Novo-SP) diz que o Legislativo vive hoje uma espécie de “ditadura” interna. “Muito se fala da ditadura do Judiciário. Mas temos uma ditadura que não se comenta: a ditadura no Poder Legislativo – onde os presidentes das casas concentram poder absoluto nas pautas e no orçamento do país”, diz ela, que é representante da bancada do Novo.
O deputado Marcelo Ramos (PSD-AM) foi o relator da Resolução 21 de 2021. Ele defende as mudanças e diz que o “kit obstrução”, tal como existia antes, impedia a maioria de se expressar no voto.
“A obstrução é um instrumento legítimo da democracia. Mas chegar ao momento de votar e a maioria se expressar, é tão ou mais legítimo que a obstrução. Portanto, a obstrução não pode ser um instrumento para impedir que a votação chegue ao fim. Você não pode ter uma obstrução que impeça a maioria de exercer seu poder de maioria. Isso não é democracia”, diz ele. “Serve para um governo e para outro. Valia para o anterior e vale para esse agora”, diz Ramos.
Cláudio André de Souza é cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), uma universidade federal criada em 2010. Para ele, o fortalecimento atual do Legislativo é “tópico” e “conjuntural”. “Envolve uma transição que a gente não sabe se vai se estabelecer a médio e longo prazo. Há um fortalecimento institucional do Legislativo, mas isso não necessariamente significa um fortalecimento da representação política. Nas pesquisas de opinião, por exemplo, o Legislativo continua amargando muita desconfiança”, diz ele.
Comissões perderam relevância
Sob Arthur Lira (PP-AL), a presidência da Câmara também passou a substituir o trabalho das comissões permanentes da Câmara – onde os integrantes são escolhidos de acordo com as bancadas dos partidos – por “grupos de trabalho” informais. Uma inovação que permite ao comando da Casa decidir quais deputados discutirão o assunto.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a reforma tributária. A proposta foi formulada por um grupo de trabalho escolhido por Lira e votada diretamente no plenário. O arcabouço fiscal, nova regra apresentada pelo governo Lula para substituir o teto de gastos públicos, também foi submetido diretamente ao plenário, mas sem grupo ou comissão. O relatório, apresentado pelo deputado Claudio Cajado (PP-BA), foi escrito sob a batuta do presidente da Câmara, que assumiu pessoalmente a articulação da proposta.
“Esse ponto talvez seja uma das maiores novidades, pois agora o presidente pode escolher fazer grupos de trabalho que são 100% informais. Regimentalmente, eles só poderiam ser usados para fazer a consolidação de leis. Não se discutiria mérito nos grupos de trabalho”, diz Graziella Testa.
“Foi o que ele fez na minirreforma eleitoral. Ele discute no grupo de trabalho e aí já depois impõe urgência e puxa para o plenário. Por isso também o aumento dos pedidos de urgência. Porque, no grupo de trabalho, ele escolhe quem ele quer para compor. Nas comissões, depende dos partidos, diz a professora da FGV.
No começo deste ano, a Mesa Diretora da Câmara também editou uma Resolução (a 15 de 2023) que permite decidir quando um projeto de lei terá de tramitar pelas comissões temáticas da Casa e quando serão criadas comissões especiais – um grupo temático, específico para aquele projeto.