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Estratégia de venda do sistema de espionagem Pegasus no Brasil inclui polícias e Ministérios Públicos estaduais

Bruno Abbud, especial para O Globo

 

SISTEMA PEGASUS ISRAEL

 

BERLIM — Em 2015, um vazamento de dados pelo site WikiLeaks revelou, entre mais de um milhão de e-mails da empresa de vigilância cibernética italiana Hacking Team, que um executivo americano do ramo de inteligência estava preocupado com a concorrência. Depois de receber a notícia de um policial do FBI de que havia no mercado um novo e poderoso sistema chamado Pegasus, fabricado por uma empresa israelense, e que podia invadir um celular sem que o alvo tivesse de clicar num link infectado, Richard Berroa, da DTXT Corp, questionou o colega da Hacking Team: "Você sabe algo sobre isso?".

 

Foi a primeira vez que a existência do software ficou exposta além dos círculos policiais. À época, a Hacking Team tentava expandir as vendas do software RCS, vulgo "Galileo", que dominava o mercado antes do Pegasus. Ao explorar uma falha nos códigos por trás de aplicativos como o WhatsApp, desconhecida por empresas de cibersegurança, contudo, os programadores do NSO Group, empresa israelense que comercializa o Pegasus, conseguiram disseminar suas vendas pelo mundo.

Segundo policiais ouvidos por O GLOBO, só o Pegasus consegue infectar um aparelho com uma ligação por WhatsApp que sequer precisa ser atendida pelo alvo.

Em 2016, ao rastrear servidores na internet, cientistas da Universidade de Toronto, no Canadá, pioneiros na investigação do uso do Pegasus por governos ao redor do mundo, descobriram vestígios do uso do software em 45 países, incluindo o Brasil. À época, apenas seis países, segundo os estudiosos, apresentavam histórico de espionagem cibernética contra civis. A revelação no último fim de semana — feita por um consórcio de 17 veículos de imprensa e ONGs — de 50 mil números que seriam de alvos do Pegasus, entre os quais jornalistas e ativistas de 20 países, segundo a Anistia Internacional, que participa do projeto, potencializa a pressão sobre a NSO Group, acusado de ganhar centenas de milhões de dólares ao negociar com governos que usam seu produto para espionar civis.

A primeira vez em que a atuação da empresa no Brasil ficou evidente, durante o congresso do Sistema Nacional de Prevenção e Repressão a Entorpecentes (Siren), em agosto de 2018, foi revelada no ano seguinte pela revista Época. Numa palestra, o delegado federal Alexandre Custódio Neto expôs os benefícios do Pegasus no combate ao crime organizado. Enquanto ele falava, os representantes da NSO Group no Brasil — os executivos Marcelo Comité Ferreira e Luciano Alves de Oliveira — rodavam o país em busca de contratos.

Só naquele ano, os executivos haviam visitado a PF, a Procuradoria Geral da República e várias secretarias de Segurança e Ministérios Públicos estaduais, contou Custódio. A justificativa dos gastos a partir da rubrica "ação de caráter sigiloso", utilizada normalmente por órgãos de Inteligência e segurança pública com base em um decreto assinado durante a ditadura militar, contudo, dificulta a publicidade de contratos do tipo.

No ano seguinte, com Bolsonaro eleito, a aproximação do NSO Group com o governo federal ganhou intensidade. O ex-premiê israelense Benjamin Netanyahu — a única pessoa a receber a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira, durante o governo do capitão — visitou o Brasil em janeiro, quando Bolsonaro lhe concedeu a medalha. No mesmo mês, o NSO Group testou pela primeira vez seus produtos no país, ao tentar encontrar os mortos pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho com um software de detecção de sinais de celulares.

Os israelenses haviam chegado ao interior de Minas Gerais numa leva de 136 militares — e ao menos um executivo, Marcelo Comité. Eles passaram menos de uma semana no local. A visita foi comemorada por Bolsonaro. Do grupo, fazia parte Shalev Hulio, co-fundador da NSO Group. Integrante da Brigada de Busca e Salvamento das Forças de Defesa de Israel, Hulio apareceu de farda, identificando-se mais como militar do que como empresário.

Dois meses depois, a mesma repartição militar da qual Hulio faz parte foi visitada por Bolsonaro em Israel. Com um respeitado general israelense entre seus conselheiros, o NSO Group só fecha contratos com a autorização do governo israelense.

Mais dois meses se passaram e, em maio de 2019, os colegas de Hulio estiveram no Rio de Janeiro para um ciclo de palestras no Centro de Educação Física Almirante Adalberto Nunes (Cefan), departamento da Marinha no Rio de Janeiro. Os temas das apresentações não foram revelados. No mesmo mês do encontro, o WhatsApp recomendou a 1,5 bilhão de usuários que atualizassem o aplicativo por causa de uma falha explorada pelo NSO Group para invadir celulares.

Ao menos até outubro de 2020, a peregrinação dos executivos da NSO Group continuou  no Brasil — mas então, devido à pandemia, virtualmente. Naquele mês, a Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) organizou o 3º Simpósio Internacional de Segurança, do qual participaram apenas policiais e executivos credenciados, entre os quais funcionários do NSO Group.

O Pegasus está disponível. Resta saber se e quantos contratos foram assinados no Brasil — onde o número de telefones celulares ultrapassa o tamanho da população.

Procurado, Marcelo Comité ainda não respondeu aos pedidos de comentários do GLOBO.

 

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