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O caso Covaxin e o fim do fim da mamata

Diga-se que não terão sido poucos os patriotas da cepa robertojefferson que “derrubaram a República”. Faço tal prevenção porque a credibilidade deste deputado Luiz Miranda não resiste a quinze segundos de pesquisa; este sujeito que ora se apresenta como paladino da luta contra a corrupção. Ademais, a título de advertência: trata-se de um bolsonarista. De um enrolado e bolsonarista. De um enrolado bolsonarista, do tipo – é impressionante – que tem acesso fácil, preferencial mesmo, ao gabinete do presidente da República. Um conjunto a nos demandar prudência.

 

Daí por que me seja impossível não considerar a hipótese de que seu surgimento súbito – cheio de verdades – decorra não somente do óbvio interesse em proteger o irmão, a quem se refere como “garoto”; mas também da intenção de blindar Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello. Desconfio.

Para que fique claro: não tenho dúvida de que o deputado deva ser ouvido na CPI. Ele decerto tem muito a dizer. Já demonstrou que tem; inclusive para nos iluminar sobre o grau de prevaricação em xeque. Vai longe... E alto. Mas me parece deletério que o faça – que fale – em sessão conjunta com o irmão, Luiz Ricardo Miranda, o servidor do Ministério da Saúde que teria sofrido carga de superiores para facilitar a vida da Covaxin; ou melhor: da intermediária Precisa, a representante do laboratório Bharat Biotech no Brasil.

Mais: o deputado deveria ser ouvido necessariamente depois de Luiz Ricardo. São dois depoimentos relevantes; mas que tratam de matérias diferentes – complementares por confronto.

Juntos, planta o ceticismo, Luiz Miranda, o bolsonarista, tende – desconfio – a operar como filtro do irmão, o “garoto”; uma espécie de apara a que Luiz Ricardo talvez se limitasse a responsabilizar escalões menores do ministério pela forma excepcional com que foi abraçada a vacina Covaxin.

Aliás, por que o deputado seria útil – porta-voz? – ao depoimento de alguém que, afinal, sofreu diretamente as supostas pressões? Luiz Miranda não estava lá. Ele ouviu do irmão os relatos sobre o que se teria passado. O peso do que o deputado tem a apresentar está no que fez – com quem falou a respeito – e no que colheu detendo aquelas informações. (Colheu, por exemplo, a manutenção do irmão no cargo.) Uma outra inquirição, de natureza diversa, tão importante quanto a de Luiz Guilherme, a merecer mesmo exclusividade.

Em suma. Luiz Guilherme tem a relatar sobre o submundo do Ministério da Saúde – não obrigatoriamente um universo distante do primeiro escalão da pasta. E Luiz Miranda, sobre como levou as notícias daquele submundo ministerial ao gabinete do presidente da República. Chegaremos lá.

Ao Ministério Público Federal, em 31 de março, Luiz Guilherme citou o tenente-coronel do Exército – ah, Exército! – Alex Lial Marinho como um dos responsáveis pelas gestões excêntricas para que se liberasse açodadamente a importação da Covaxin. Marinho era coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde, integrava o grupo de auxiliares próximos, gente de confiança, de Pazuello – e só seria demitido do ministério sob Marcelo Queiroga.

Antes, houve a demissão do próprio Luiz Guilherme – derrubado, segundo o deputado, por denunciar internamente o esquema de corrupção. Informou-nos Luiz Miranda que, ao saber da exoneração do irmão, procurara Pazuello, contara-lhe sobre os desvios e ameaçara “explodir” o caso na mídia – o que faz agora – caso “o garoto” fosse prejudicado. Teve sucesso. Luiz Guilherme se manteve no posto, como chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde. E o deputado segurou a bomba. (Por que a detona agora?)

A bola, então, ficava com Pazuello, o ministro de Estado: não apenas para reverter, como reverteu, uma injustiça; mas para – não prevaricando – avançar na apuração da grave denúncia. Avançou? Ou prevaricou? Ou – há fios narrativos para se proteger assim – teria sido vítima daquela cultura dos pixulecos, de um Ministério da Saúde profundo e obscuro, contra o qual resistia e que afinal o derrubaria? O deputado Luiz Miranda, bolsonarista, parece armar a embocadura para poupar o ex-ministro. Desconfio.

O grau de possível prevaricação, porém, sobe. Porque Luiz Miranda – segundo Luiz Miranda – teria relatado a existência do esquema, pessoalmente, a Bolsonaro; e ainda, por escrito, via mensagem, a um assessor direto do presidente. O deputado dá detalhes. No encontro com Bolsonaro, diante do relato e ante documentos, teria ouvido que o Planalto acionaria a Polícia Federal imediatamente. Era 20 de março. Naquela altura, contudo, o contrato para aquisição da Covaxin já fora assinado, em 25 de fevereiro. Nada impedia, dada a gravidade do acusado, a revogação – registre-se.

Ocorre – atenção a isto – que Miranda também estivera com Bolsonaro bem antes, nos dias 29 e 30 de janeiro; e, segundo o site O Antagonista, teria detalhado ao presidente a situação relativa à contratação da Covaxin, mui provavelmente mais preocupado em proteger o irmão.

Naquela altura, o governo já estava mais do que engajado na aquisição da vacina indiana. E sem se importar com o histórico da Precisa; ou não teria sido uma empresa sócia, a Global, aquela que, em 2017, dera um calote de R$ 20 milhões no Ministério da Saúde do então ministro Ricardo Barros, hoje líder de Bolsonaro na Câmara?

Somente isso já bastaria a que se impusesse – ao governo que acabaria com a mamata – a pergunta: como se pôde fechar, frente ao que valera uma ação de improbidade contra Barros, contrato de intermediação com a Precisa? (Aliás: legislando em causa própria, a Câmara tenta forjar uma nova lei de improbidade que seria um presente para o líder do governo; né?)

Voltemos a janeiro de 2021, quando o Parlamento passou a tratar de uma medida provisória que permitiria que a Anvisa concedesse “autorização para importação e distribuição de quaisquer vacinas” sem registro na agência desde que aprovadas por algumas autoridades sanitárias internacionais específicas e restritas. A MP, para fins de uso emergencial de imunizantes, fora editada pelo Planalto a 5 de janeiro – precisamente. E listava as agências admitidas: dos EUA, da União Europeia, do Reino Unido, do Japão e da China.

Em 7 de janeiro, agentes da Precisa – em viagem à Índia para cuidar da representação da Covaxin – tiveram reunião na Embaixada brasileira em Nova Déli. No dia seguinte, 8 de janeiro, com a Precisa se movendo na Índia, Bolsonaro escreveria ao primeiro-ministro indiano informando que a Covaxin – ainda não contratada, e descoberta para qualquer uso emergencial – integraria o Plano Nacional de Imunização do Brasil.

Sim. O mesmo Bolsonaro para quem a falta de chancela da Anvisa fora grave impeditivo para que se firmasse contratos diretos com Coronavac (U$10,30 a dose) e Pfizer (U$10); este – o mesmo Bolsonaro – que então corria, ele mesmo em campo, para assinar, via intermediário, por uma vacina (U$15) não apenas não avalizada pela agência como ainda em estágio de testes anterior. Estava certo. Aprovação de autoridade sanitária é para aplicar imunizante no braço do povo. Não para se firmar contratos que colocariam o país bem na fila dos recebimentos. Estaria o presidente aprendendo? Não. O governo começava a fazer a coisa certa – tudo indica – por interesses errados.

No Brasil, a MP tramitava. Lembremos: Bolsonaro teria sido informado sobre o caso de corrupção – por Luiz Miranda – ao fim de janeiro; e teria se comprometido a agir. Em 3 de fevereiro, olha ele aí, Ricardo Barros, antigo conhecido da turma da Precisa, propôs emenda à medida provisória; ajuste que incluía a agência sanitária indiana à lista das autoridades cujo aval serviria para a importação e distribuição emergencial de vacinas – o que, claro, contemplava a Covaxin. A emenda seria aprovada com louvor.

Neste mesmo início de fevereiro, em entrevista ao Estadão, Barros declarou: “Estou trabalhando. Eu opero com formação de maioria. O que eu apresentar para enquadrar a Anvisa passa aqui [na Câmara] feito um rojão”. (...) “Eu vou tomar providências, vou agir contra a falta de percepção da Anvisa sobre o momento de emergência que nós vivemos. O problema não está na Saúde, está na Anvisa. Nós vamos enquadrar.”

E, no fim de abril, desde a tribuna, à parte os delírios sobre um governo vacinador, bradou: “Muitos bilhões de reais foram disponibilizados para o combate à Covid, vacinas compradas, contratadas, ainda com poucas vacinas autorizadas pela Anvisa e, portanto, atrasando o nosso cronograma de vacinação. Mas o governo fez e assinou os contratos. Nós temos 500 milhões de doses de vacinas contratadas. E contratará mais, porque, como estamos vendo a programação de entrega de vacinas não pôde ser cumprida porque não houve liberação da Anvisa nem da Covaxin, nem da Sputnik, nem de outras vacinas que estão lá com pedido de uso emergencial.”

Fim.

Fim do fim da mamata. O GLOBO

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