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O ENSAIO DE VOLTA ÀS AULAS NO BRASIL DURANTE A IMUNIZAÇÃO

Jan Niklas e Bruno Alfano, do Rio de Janeiro, e Sérgio Teixeira Jr., de Nova York / ÉPOCA

 

Tudo parece muito familiar. O horário de acordar é o mesmo de antigamente. O da saída de casa, idem. O itinerário também é igual. É na chegada à porta da escola que a realidade se impõe. Fica claro que não, a vida não voltou totalmente ao normal. A máscara no rosto, o número reduzido de crianças e jovens e os funcionários com termômetro na frente do prédio são sinais inequívocos de que ainda estamos no meio da pandemia. Bem-vindo a uma volta às aulas como nenhuma outra antes.

Isso já está acontecendo em São Paulo, estado que permitiu a reabertura de atividades em escolas particulares a partir do começo de fevereiro, sob a condição de que aceitassem seguir protocolos de proteção contra a Covid-19 e adotassem um modelo híbrido que alterna aulas presenciais e remotas. O retorno da rede pública estadual, a maior do país, está marcado, nos mesmos moldes, para o dia 8, e o da rede municipal, para uma semana depois. No Colégio Andrews, tradicional escola no Humaitá, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, a infraestrutura foi toda readaptada com medidas de segurança, como distanciamento de 1,5 metro entre as carteiras, para receber os alunos também no início de fevereiro. As redes estadual e municipal do Rio têm previsão de recomeçar o presencial de forma facultativa nas próximas semanas.

Crianças que moram em lares com pessoas do grupo de risco não vacinadas são aconselhadas a evitar as aulas presenciais. Foto: Ana Branco / Agência O GloboCrianças que moram em lares com pessoas do grupo de risco não vacinadas são aconselhadas a evitar as aulas presenciais. Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Antes de Rio e São Paulo, ainda em janeiro, Goiás tinha tomado a decisão de retomar as atividades presenciais nas escolas públicas e privadas. Entre fevereiro e março, quase todos os outros estados deverão seguir o mesmo caminho. Os únicos que ainda não definiram uma data são Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Minas Gerais e Bahia. Mesmo contabilizando esses sete estados, é clara a tendência em favor da reabertura parcial de escolas particulares e públicas, o que deve tirar o país de uma triste posição.

O Brasil foi um dos líderes na lista dos que mantiveram as escolas parcial ou completamente fechadas por mais tempo desde o início da pandemia. As escolas brasileiras ficaram 40 semanas sem abrir as portas em 2020, contra 35 no México, 26 na Itália, 14 em Portugal e seis na Suíça, revela um dado recém-divulgado pela Unesco, o braço da ONU para a educação.

No início de fevereiro, o governo francês anunciou que as instituições de ensino não serão afetadas caso seja determinado um lockdown devido a uma nova onda de contágios. Na Inglaterra, a expectativa do governo é que as escolas, fechadas recentemente por causa do aumento do número de casos, reabram a partir do começo de março. À primeira vista, pode parecer estranho que países ricos, com larga penetração de banda larga, tenham optado pelo mantra “no vaivém da pandemia, escolas são as últimas instituições a fechar e as primeiras a abrir”. Não é preciso ir até a Europa para entender essa predileção pelo presencial. Experiências recentes por aqui também ajudam a explicá-la. Ao longo do ano passado, várias escolas particulares frequentadas por quem está no topo da pirâmide social brasileira fizeram uma rápida e eficiente transição para o ensino remoto. Com uma clientela sem problemas de acesso à internet de banda larga e a computadores, conseguiram manter o cronograma de todas as séries e viram seus alunos do terceiro ano do ensino médio serem aceitos nas mesmas universidades de anos anteriores.

Um estudo da Unicef estima que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros tiveram seu direito à educação negado em 2020. Foto: Leo Malafaia / AFP
Um estudo da Unicef estima que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros tiveram seu direito à educação negado em 2020. Foto: Leo Malafaia / AFP

Esse foi o caso do Colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo. “Nossas atividades on-line evoluíram muito em 2020, mas o ideal continua sendo o presencial. É na escola que o professor pode avaliar melhor a produção intelectual dos alunos e dar um reforço imediato”, disse Silmara Casadei, diretora-geral pedagógica do Porto Seguro. Manu Karsten, mãe de dois alunos da escola, um no segundo ano e outro no quarto, confirmou. "Meus filhos tiveram bom desempenho, mas não foi o mesmo que teria sido no presencial. Sem falar que criança precisa de criança para manter a saúde mental”, disse Karsten. Dos 9 mil alunos do Porto Seguro, 70% optaram, neste começo de 2021, por frequentar a escola no esquema híbrido. Cerca de 20% declinaram porque estão no grupo de risco ou moram com pessoas nessa condição. Apenas 10% disseram que iriam para o presencial, mas continuaram somente no remoto.

“O BRASIL ESTÁ ENTRE OS PAÍSES QUE MANTIVERAM AS ESCOLAS FECHADAS POR MAIS TEMPO DESDE O INÍCIO DA PANDEMIA. MESMO NAÇÕES RICAS, QUE CONTAM COM AMPLA REDE DE INTERNET DE BANDA LARGA, DERAM PRIORIDADE A AULAS PRESENCIAIS”

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Se a volta às escolas é importante para a elite, o que dizer da urgência para a população vulnerável? A pesquisa Enfrentamento da cultura do fracasso escolar, lançada pelo Unicef em janeiro em parceria com o Instituto Claro e produzida pela ONG Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), estima que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros tiveram seu direito à educação negado em 2020 — um salto perante o 1,5 milhão que estava fora da escola em 2019, segundo o IBGE. São alunos que não tiveram acesso a qualquer tipo de ensino escolar. “O cenário de desigualdades na educação brasileira, que já era grave antes da pandemia da Covid-19, hoje é alarmante”, disse Ítalo Dutra, chefe de educação do Unicef no Brasil.

Outro achado da pesquisa: 11,2% dos estudantes (4,12 milhões) disseram ter frequentado a escola em 2020, mas afirmaram não ter recebido nenhuma atividade escolar. “Escolas fechadas geram prejuízo na aprendizagem dos estudantes, no desenvolvimento cognitivo, social, emocional, físico e até na segurança alimentar. As crianças mais pobres do Brasil dependem da escola para comer”, disse Priscila Cruz, cofundadora e presidente-executiva da ONG Todos Pela Educação. Levando isso em conta, a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro vai priorizar, na volta às aulas presenciais, os 70 mil alunos em situação de maior vulnerabilidade social, cerca de 10% da rede estadual.

Pais levam seus filhos a escolas particulares em São Paulo na primeira semana de fevereiro. A reabertura das públicas está em risco diante da possibilidade de greve dos professores. Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo
Pais levam seus filhos a escolas particulares em São Paulo na primeira semana de fevereiro. A reabertura das públicas está em risco diante da possibilidade de greve dos professores. Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo

Um dos obstáculos ao plano de reabertura parcial é a ação dos sindicatos de professores, muitos deles já ameaçando entrar em greve. Nos Estados Unidos, não é muito diferente. Em Nova York, pré-escola, ensino básico e instituições para alunos com necessidades especiais oferecem aulas presenciais, mas mais de 1,1 milhão de alunos da rede pública continuarão olhando para a tela do computador até o fim do ano letivo, no meio deste ano. Bill de Blasio, o prefeito da cidade, prometeu que a partir de setembro tudo voltará à normalidade. Já se desenha, porém, uma queda de braço com os sindicatos dos professores, que só concordam em voltar para as salas de aula quando estiverem todos vacinados, o que deve acontecer num período mais adiantado do que no Brasil em razão da inserção da categoria no grupo de prioridades no país. “Os sindicatos deveriam ser mais flexíveis. Hoje a internet caiu no meu prédio. Como as crianças daqui estão estudando? Existem crianças acompanhando aulas pelo smartphone. Você consegue imaginar estudar pelo celular?”, perguntou Meryle Weinstein, professora de políticas educacionais na Universidade de Nova York.

“MUITOS PAIS SE PREOCUPAM COM O DESRESPEITO AOS PROTOCOLOS DE SEGURANÇA POR PARTE DE SEUS FILHOS NAS ESCOLAS. NOS LUGARES EM QUE CUIDADOS BÁSICOS FORAM SEGUIDOS, AS TAXAS DE INFECÇÃO FORAM MUITO BAIXAS”

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O debate sobre a retomada das aulas presenciais costuma sofrer a oposição dos que se autointitulam “defensores da vida”. Para essas pessoas, crianças e jovens na escola são sinônimo de aumento de contágio pelo coronavírus e, consequentemente, de mortes. Sindicatos de professores aqui no Brasil e em outros países costumam estar nesse campo, mas a ciência — pelo menos até agora — contesta esse entendimento.

Em primeiro lugar, porque o risco para crianças e jovens é considerado baixo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), dos casos diagnosticados de Covid-19 no mundo, 1,2% correspondem a crianças menores de quatro anos, 2,5% entre 4 a 14 anos e 9,6% a jovens de 15 a 24 anos. Dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde a respeito de Síndrome Respiratória Aguda Grave mostram que um pouco mais de 1.100 crianças e jovens de 0 a 19 anos morreram com o sintoma devido a Covid-19. Eles representam 0,65% de todas as mortes registradas.

­ Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo
­ Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo

Em segundo lugar, parece pouco provável que escolas sejam grandes focos de disseminação do vírus. Num artigo publicado no final de janeiro, cientistas dos Centros de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos afirmam que “há poucas evidências de que as escolas tenham contribuído de forma significativa para a transmissão comunitária” do coronavírus. Um dos estudos mencionados pelos autores acompanhou mais de 90 mil crianças e jovens que foram à escola na Carolina do Norte durante nove semanas do segundo semestre do ano passado. Nesse período, houve 32 casos infecção nas próprias escolas, contra 773 fora delas. Não se registrou nem um único caso de professor ou funcionário que tenha contraído Covid-19 de um aluno.

“EM VÁRIOS ESTADOS BRASILEIROS, A ABERTURA DE BARES, RESTAURANTES E BOATES TEM SIDO CONSIDERADA MAIS NECESSÁRIA QUE A DE ESCOLAS. MUITOS GOVERNADORES ESTÃO PROMETENDO REVER SUAS PRIORIDADES EM 2021”

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Um levantamento semelhante realizado em 12 países europeus e publicado em dezembro pelo CDC Europeu apontou que os surtos identificados foram pequenos (menos de dez casos) e não poderiam ser associados com certeza absoluta às escolas. Um estudo da Public Health England (PHE), da London School of Hygiene and Tropical Medicine e da Universidade St George’s afirma que o risco de contágio da Covid-19 em escolas reabertas na Inglaterra foi baixo. No entanto, para que isso acontecesse, dizem os autores, houve medidas de segurança sanitária. Os colégios funcionaram com apenas parte de sua capacidade e os alunos foram divididos em grupos. Quando um caso de infecção era detectado, somente os membros daquele grupo ficavam em quarentena, não a escola inteira. Acima de tudo, o retorno presencial foi feito em um momento em que o número de casos diários da doença havia sido reduzido.

Mas, embora os dados atenuem o potencial das escolas como motores de expansão do vírus, há pais que não creem no cumprimento dos protocolos sanitários nem pela escola nem pelos próprios filhos. É o caso de Maire Baltar, de 50 anos, mãe de uma menina de 16 e avó de outra, de 9. “Adolescentes não têm limites. São ‘imortais’ por natureza. Muitos querem voltar para a escola apenas pelo social. Rever os amigos, namorar... Fico em pânico só de pensar. Meus pais moram comigo, estão com 80 e 86 anos. Antes da vacina, sem chance”, disse.

Países duramente afetados pela pandemia, como Itália e Estados Unidos (foto abaixo) têm feito um esforço para manter as escolas abertas sempre que possível. Foto: Salvatore Laporta / Getty Images
Países duramente afetados pela pandemia, como Itália e Estados Unidos (foto abaixo) têm feito um esforço para manter as escolas abertas sempre que possível. Foto: Salvatore Laporta / Getty Images

A preocupação não é totalmente descabida, sobretudo depois do surgimento das novas variantes do vírus identificadas no Reino Unido, na África do Sul e em Manaus, que aumentam a necessidade de mais planejamento por parte das autoridades responsáveis pela volta às aulas. Em São Paulo, a retomada nas escolas particulares acontece em meio à flexibilização das regras de abertura do comércio, de bares e restaurantes pelo governo do estado. Desde 25 de janeiro, esses estabelecimentos deveriam parar de funcionar à noite e aos finais de semana, como estratégia para conter os avanços de casos da doença. No último dia 3, o governador João Doria deu o plano por encerrado, embora o número de internações no estado tenha recuado apenas 8% no período, o que indica estabilidade, segundo os especialistas — não queda. “Se tivermos de optar, nós vamos optar pela educação, isso tem de ser uma opção de nossa sociedade”, afirmou o secretário estadual de Educação de São Paulo, Rossieli Soares.

No Rio, um grupo de 150 pediatras lançou uma campanha cobrando o poder público para colocar em primeiro lugar os planos de retomada de atividades nas escolas públicas. Isso significa, segundo eles, priorizar esses espaços em detrimento de outros setores, como comércio e boates. “A falta de escola representa um fator extremamente nocivo para a criança. Mas os colégios têm de estar em bom estado, ter bons protocolos, professores treinados e testagens”, afirmou o pediatra Daniel Becker, um dos organizadores da campanha carioca. “A abertura dos colégios é um fator importante, que tem de ser priorizada. Bar e atividades de lazer não podem abrir antes das escolas. Mas tem de cuidar de como fazer isso”, disse Mellanie Fontes-Dutra, pesquisadora de bioquímica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.

­ Foto: Michael M. Santiago / Getty Images
­ Foto: Michael M. Santiago / Getty Images

As redes pública e particular do Rio vão trabalhar com quatro cenários. O limite de alunos que as escolas estarão autorizadas a receber vai variar de acordo com a cor da bandeira do município no mapa de risco da Covid-19. Na cor verde, as unidades podem trabalhar com 100% dos alunos nas atividades presenciais; na bandeira amarela deve ser de até 50%; e na laranja, 35%. Já na bandeira vermelha as escolas devem fechar. Em São Paulo, se uma área estiver nas fases vermelha ou laranja, as escolas poderão receber diariamente até 35% dos alunos matriculados. Na fase amarela, ficam autorizadas a atender até 70% e, na fase verde, até 100%.

Fátima Gavioli, secretária de Educação de Goiás, conta que a opção pela retomada das aulas presenciais se deu ainda em novembro do ano passado, após o gabinete de crise do governo liberar o retorno, desde que respeitado o limite de ocupação de 30% da capacidade máxima de cada instituição e também em veículos de transporte escolar. Como o ano letivo já estava no fim, Gavioli optou por usar o tempo para planejar a reabertura e voltar em 2021. “Fizemos uma portaria instruindo os conselhos escolares com protocolos de biossegurança e repassando recursos para compras dos EPIs necessários. Além disso, deixamos cada escola decidir se queria retornar de forma híbrida ou remota. Após duas semanas de retomada do calendário, saímos de 8% para 12% das escolas com atividades presenciais funcionando”, disse Gavioli. Municípios que estão com bandeiras epidemiológicas em fases de maior alta de casos seguem com as escolas completamente fechadas. Para que o Brasil não repita em 2021 o desastre na educação visto no ano passado, todos vão ter de fazer a lição de casa.

 

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