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Lava Jato, partidos e democracia

Difícil calcular, ainda, o impacto e o alcance de uma operação como a Lava Jato não só sobre usos e costumes, como também sobre o sistema partidário, esse elemento central da vida democrática. Numa visão clássica da moderna comunidade política de massas, os partidos são a própria “democracia que se organiza”, ao lado, naturalmente, de outros numerosos institutos que expressam o associativismo, representam interesses e, em última análise, animam o confronto de ideias e dão substância ao pluralismo.

Não é trivial saber, pela voz do Ministério Público, que haverá consequências para partidos, como o PT ou o PMDB, que em maior ou menor grau se envolveram em esquemas de poder ao longo dos últimos governos. Esses dois partidos não são agremiações irrelevantes. O primeiro corporificou majoritariamente a “nova esquerda” tal como construída no País redemocratizado; o segundo constituiu o instrumento decisivo para a derrota do regime militar, manteve capilaridade em todo o território nacional, mesmo depois do desaparecimento de suas lideranças históricas e de sua evidente involução programática – o partido que gerou, há décadas, documentos como Esperança e Mudança só recentemente reencontrou fôlego para propor “uma ponte para o futuro”, seja qual for o juízo que fizermos da possibilidade de uma ação partidária minimamente vertebrada daqui por diante.

O impacto sobre um partido de esquerda, como o PT, medido pela eventual retenção significativa de fundos públicos ou pela hipótese extrema de cassação do registro, não pode nem deve ser subestimado. Melhor buscar atar algumas pontas soltas de nossa história política do que bradar, de modo estridente ou imaturo, contra perseguições ou pretensas tentativas de criminalização de uma força popular, urdidas por uma “direita” aninhada nos órgãos republicanos de controle e mancomunada com a mídia conservadora e outras forças do mal. O maniqueísmo não costuma ser bom conselheiro; antes, é uma das formas prediletas de loucura induzidas pelos deuses naqueles a quem querem perder.

Se de esquerda falamos e com fios soltos temos de lidar, um caminho é fazer um corte radical e voltar brevemente a um tempo distinto sob tantos aspectos, mas também, como este nosso, um tempo partido e de homens partidos, para evocar a imagem de um esplêndido poeta então momentaneamente “engajado”. Interessantíssima experiência teve a esquerda marxista brasileira – partidariamente organizada – no curto período de legalidade do antigo PCB, logo no segundo pós-guerra. Com relativo êxito eleitoral, esse grupo obteve registro entre novembro de 1945 e maio de 1947, enriquecendo as instituições com a representação dos excluídos, tal como se podia esperar de um partido que contava, entre outros, com Luiz Carlos Prestes, Jorge Amado, Mário Schenberg e Caio Prado Júnior.

Ça va sans dire, aquele comunismo tinha relações conflituosas com a democracia política. Por um lado, sua presença legal alargava os espaços da representação e introduzia no sistema partidário um contingente de cidadãos até então majoritariamente excluídos. Por outro, era de esperar que a própria democracia, com sua dinâmica e suas exigências inescapáveis, reduzisse o caráter toscamente antissistema do ator, tal como configurado no marxismo-leninismo de extração stalinista. Um duplo movimento que, realizado em outros lugares, traria ganhos consideráveis à vida civil, e podemos supor razoavelmente que não teria sido diferente na democracia garantida pela Constituição de 1946.

Assim, a prolongada clandestinidade ou semilegalidade do PCB não dizia respeito só aos comunistas, mas representava pesada hipoteca sobre a qualidade de nossa vida pública. Entre outras coisas, contribuiu para que a esquerda marxista, em sua quase totalidade, amadurecesse com dificuldade ou não amadurecesse de todo, mantendo extemporâneas veleidades “revolucionárias”, haja vista a fortuna retórica – má retórica! – dos apelos à “luta armada” que vez por outra ainda se fazem ouvir, no rastro da memória dos hiperideologizados anos 1960.

Já quase esvaziada a forma política do comunismo histórico, o PCB empregou suas últimas forças numa tarefa ainda insuficientemente resgatada e valorizada, a saber, uma estratégia de frente democrática com o segundo dos partidos hoje sob risco de punição, o MDB e o PMDB, para enfrentar o regime ditatorial.

Do ponto de vista teórico, em prazo maior ou menor uma estratégia desse tipo não poderia deixar de ter repercussões decisivas – para falar com clareza, a assimilação e a valorização dos princípios liberal-democráticos, a compatibilização das “liberdades negativas” próprias do liberalismo com as “liberdades positivas” próprias das correntes democráticas, sempre preocupadas com a generalização da cidadania e a regulação das economias de mercado. Afinal, só espíritos extremados, adeptos de um liberalismo econômico sem limites, admitem como boa coisa uma “sociedade de mercado”, fechando os olhos para injustiças e desigualdades que gera automaticamente.

É possível que parte considerável das dificuldades do petismo no poder consista na manutenção puramente exterior de alguns dos piores vícios do comunismo histórico, como o centralismo, o culto à personalidade e a pretensão de ser superior às degenerações “burguesas”, como se isso garantisse, a priori, a correção de comportamentos individuais e políticas públicas. E como se os críticos, sejam quais forem suas motivações e orientações de valor, devessem ser confinados no perímetro de uma odiosa “direita”, à qual no fundo não se reconhece legitimidade por estar na condição de “inimigo total”. É o que nos volta a ensinar, como num manual, o bolivarianismo da vizinhança. Nossa esquerda, em algum momento, renunciará a esse legado?

* LUIZ SÉRGIO HENRIQUES É TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS 'OBRAS' DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG - O ESTADO DE SÃO PAULO

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