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Um cabo de guerra na longa noite da pandemia

*Bolívar Lamounier, O Estado de S.Paulo

23 de maio de 2020 | 03h00

Para bem compreender o que está acontecendo no Brasil creio ser útil começar pelo dicionário. Cabo de guerra, por exemplo. O Aurélio ensina que essa velha expressão designa “um jogo ou competição em que dois grupos de contendores puxam em direções opostas as pontas de uma corda grossa, vencendo a que conseguir arrastar a outra”.

Transpondo a ideia do cabo de guerra para o plano da política, logo percebemos uma grave implicação. Se a capacidade física dos contendores for aproximadamente igual, o resultado pode ser um prolongado empate. Ora, o essencial da política pública é a escolha entre alternativas e a implementação das ações de governo que dela decorre. Vigente o empate no cabo de guerra, as duas forças se neutralizam e tais ações perdem eficácia, como temos visto no combate à pandemia do coronavírus. Esse empate pode tornar nossa situação muito mais perigosa do que a existente em outros países. A persistir tal empate, nós, cidadãos comuns, pagaremos o pato. 

Em nosso cabo de guerra temos, de um lado, os governadores e prefeitos fazendo o que podem, com recursos insuficientes e enfrentando a propagação do coronavírus, um inimigo onipresente e assombrosamente ágil. Do outro, Jair Bolsonaro, um presidente que não se notabiliza por elevado senso de responsabilidade, fomentando aglomerações, forçando a barra para que o desejável relaxamento da quarentena se transforme num estouro da boiada e, não menos importante, insistindo num remédio, a cloroquina, cuja eficácia no tratamento da covid-19 não parece superior à de um licor de jenipapo. 

Tem saída isso? Tem, mas para bem compreendê-la precisamos primeiro esclarecer um aspecto da nossa cultura política, em especial certas noções referentes ao sistema de governo presidencialista de governo. Não tendo escoimado de uma vez por todas o ranço caudilhista e populista que nele se incrustou desde os primórdios da República, temos inconscientemente sustentado a equivocada noção de que o presidente da República é a instância última da legitimidade política. 

Fato é, no entanto, se formos um pouco além do pensamento estritamente jurídico, que a legitimidade em última instância não reside na Presidência da República, e sim no Supremo Tribunal Federal (STF). Se assim não fosse, como iríamos entender sua função arbitral de última instância? Sendo ele a cúpula do Judiciário, a ele cabe dirimir todos os impasses, incluídos aqueles que se constituem no embate entre os outros dois Poderes, entre os partidos políticos e entre os demais agentes políticos. A proposição que venho de enunciar não é fruto de especulação, pois está constitucionalmente especificada em institutos como a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação direta de constitucionalidade (Adin) e a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), entre outras. 

Voltemos, então, ao cabo de guerra que estamos presenciando no combate ao coronavírus. Dando prioridade ao princípio federativo e ao que a Constituição expressamente determina, o STF, atribuiu aos Estados e municípios a responsabilidade primária pela missão de organizar o vírus. Não se trata, como é óbvio, de uma atribuição privativa do município, e sim concorrente com a dos Estados e da União. Essa determinação do STF implicou uma clara dilatação do papel desses dois entes federados, que se vem manifestando na aquisição de equipamentos de proteção, na imposição de restrições ao direito de ir e vir e à atividade econômica, além, é claro, da função precípua de manter os sistemas de saúde e funerários. Uma eloquente ilustração da dilatação a que me refiro é o inusitado empenho que os Estados tiveram de assumir na importação de equipamentos de proteção para o pessoal médico, tendo mesmo se deparado com dificuldades bizarras, num momento em que o comércio internacional parece ter retornado a práticas simplesmente selvagens.

Não preciso deter-me no destaque dado pela Constituição aos municípios (CF88VII). Comentando esse ponto, o professor Antônio Sérgio P. Mercier acertadamente escreve: a cooperação entre o município, o Estado e a União diz respeito, entre outras finalidades, à “prevenção ou debelação dos perigos que dizem respeito à saúde da população, como endemias, epidemias e a possibilidade do aparecimento de moléstias transmissíveis” (Costa Machado e Anna Cândida da Cunha Ferraz, organizadores, A Constituição Federal Interpretada, Editora Manole).

O que acabo de expor deve ser suficiente para ilustrar o enorme risco com que a saúde dos brasileiros se vai deparar enquanto persistir o cabo de guerra entre o presidente Jair Bolsonaro, puxando uma ponta da corda, e os Estados e municípios puxando a outra. Do exposto deve-se, pois, inferir que Jair Bolsonaro, ao dificultar a ação dos Estados e municípios durante uma emergência gravíssima, reiteradamente comete crimes de responsabilidade, configurando-se, pois, claramente, a conveniência da abertura do processo de impeachment.

*SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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