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A OMC e os valores civilizados

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

05 de janeiro de 2020 | 03h00

Um dos símbolos mais fortes de um mundo comprometido com a cooperação, a paz e a prosperidade geral, a Organização Mundial do Comércio (OMC) completa 25 anos acuada e sem condições de cumprir uma de suas principais funções, a solução de disputas entre os países-membros. Se há alguma notícia positiva, é a disposição reafirmada por seu diretor-geral, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, de continuar buscando uma fórmula para preservar e reativar o Órgão de Apelação, instância máxima do sistema de solução de controvérsias. Com 164 países-membros e uma história de grandes serviços prestados à comunidade internacional, a OMC foi solapada nos últimos dois anos por uma nova onda nacionalista, populista e antiglobalista. O líder mais notório desse movimento é o presidente norte-americano Donald Trump. Um de seus seguidores é o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, auxiliado nessa cruzada principalmente pelos ministros do Exterior, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. 

Emperrar a nomeação de juízes para recompor o Órgão de Apelação da OMC foi uma das principais ações do presidente Donald Trump contra o sistema internacional de comércio. O governo dos Estados Unidos, como qualquer outro, pode reclamar dos critérios daquele órgão ou de qualquer aspecto do ordenamento das trocas internacionais. O tratamento razoável de questões desse tipo envolve discussão, negociação e votação em foros apropriados. Os padrões do presidente Trump são outros. 

Ele prefere impor seus pontos de vista, e assim procedeu, ao forçar a paralisação de uma das funções essenciais da OMC. Da mesma forma, em duas ocasiões ameaçou barrar importações de aço e de alumínio provenientes do Brasil. Na segunda ocasião, contra todas as evidências, acusou as autoridades brasileiras de manipular o câmbio – e essas autoridades ficaram de cabeça baixa, limitando-se a prometer uma busca de entendimento amigável com o grande guru. 

Apesar da fidelidade à ideologia trumpista, o governo brasileiro se absteve, até agora, de torpedear a OMC ou de causar qualquer prejuízo sério a seu funcionamento. Em várias ocasiões o presidente Bolsonaro e seus auxiliares tropeçaram no jogo de seguir o mestre. Não chegaram a abandonar o acordo de Paris sobre o clima, embora tenham chegado perto, muito perto, de criar para o agronegócio brasileiro a imagem de incendiário. Não transferiram a embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém, limitando-se à criação de um escritório comercial. Quase conseguiram impedir o abastecimento de dois navios iranianos carregados de milho brasileiro, mas o Judiciário atrapalhou o espetáculo e mais uma vez a obediência ao guru Donald Trump foi imperfeita. 

Também imperfeito é o sistema internacional de comércio, mas a OMC materializa um dos maiores sucessos alcançados até hoje na conformação de uma ordem econômica multilateral. Em operação desde janeiro de 1995, essa entidade é sucessora do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), implantado em 1947, numa das primeiras tentativas de reorganização da vida internacional depois da 2.ª Guerra Mundial. Com escopo mais amplo, a OMC estendeu as normas comerciais aos serviços, criou condições para a expansão dos fluxos de investimento e facilitou a implantação das novas cadeias globais de produção e de criação de valor. Desde 1995 o produto bruto mundial foi duplicado, enquanto o comércio de bens foi quadruplicado em valor e multiplicado por 2,7 em volume. As tarifas médias caíram de 10,5% para 6,4%. A prosperidade espalhou-se. Hoje a pobreza extrema, definida pelo limite diário de renda de US$ 1,95, atinge menos de 10% da população mundial. Em 1995, esses pobres eram mais de um terço da população mundial. 

Esses números dizem muito mais que qualquer discurso a respeito das vantagens da cooperação e do multilateralismo. Dão razões muito claras e fortes para a preservação, aperfeiçoamento e multiplicação de instituições como a OMC – e para a rejeição, é claro, de quaisquer pretensões de hegemonia internacional baseada no poder econômico e na força. 

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