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NA PRÁTICA, JUSTIÇA BRASILEIRA É BASEADA EM RELAÇÕES PESSOAIS

Domingo passado o The Intercept Brasil veiculou mensagens de texto trocadas entre um procurador da República, um magistrado e outros agentes, envolvidos na condução da Operação Lava Jato em Curitiba. Do que até então foi revelado, notam-se a troca de informações sobre o andamento dos processos e diligências a ser realizadas, suas representações sobre os personagens envolvidos, assim como decisões informais sobre as provas.

 

Por ter escrito uma tese de doutorado baseada na realização de trabalho de campo no Poder Judiciário, acompanhei, durante um ano e meio, o funcionamento de uma das varas criminais da comarca do Rio de Janeiro. Assim, observei o trabalho dos agentes responsáveis pela aplicação da lei penal, antes e depois da realização das audiências e das sessões de julgamento, bem como em seus intervalos.

 

Em especial, atentei para as funções desempenhadas por defensores públicos e promotores de Justiça e suas práticas em seus gabinetes. Pude, por isso, também observar as formas pelas quais são estabelecidas as relações pessoais e profissionais entre eles.

 

Para além das informalidades e ilegalidades identificadas nas conversas veiculadas e suas possíveis consequências, os comentários sobre a “Vaza Jato” denotam, por parte daqueles que os enunciam, grande surpresa. A leitura choca quem toma conhecimento de tais relações, apontadas como pouco transparentes e não republicanas. E, ainda, que têm por consequência a negociação (ou subtração) de direitos dos réus e a subversão da posição do magistrado, que passa a funcionar explicitamente como um inquisidor, já que atua como parceiro do Ministério Público e não como garantidor dos direitos do acusado.

 

O juiz federal Sergio Moro e o procurador da republica Deltan Dallagnol Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O juiz federal Sergio Moro e o procurador da republica Deltan Dallagnol Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

No trabalho de campo que realizei, notei que diversos tipos de acertos eram feitos entre acusação e defesa, e também entre eles e os magistrados. Os “acordos”, que não são permitidos pela legislação brasileira, eram eventualmente firmados por meio de mensagens de WhatsApp e conversas telefônicas. Tais ajustes buscavam acelerar, ou reduzir, o volume de trabalho dos agentes, sem necessariamente indicar apreço por garantir os direitos dos réus. No entanto, à diferença do que demonstram as mensagens veiculadas pelo The Intercept Brasil, nos casos que acompanhei a defesa não ficava afastada das negociatas. Isso porque os defensores públicos, em razão de integrarem a “família judicial”, podiam participar desses contatos informais. O mesmo não ocorria com os advogados. Esses últimos, ao explicitamente demandarem a aplicação das regras processuais e os direitos correspondentes, eram identificados como chatos e impertinentes e não participavam do que era transacionado entre os agentes do Estado.

Ainda, os casos por mim acompanhados raramente eram de repercussão. Ou seja, tratava-se de processos que, por suas características, não mobilizavam, de modo particular, os agentes que fazem o sistema de Justiça criminal funcionar. Significa dizer que, em contraste com os personagens da Lava Jato, aqueles acusados eram considerados muito menos relevantes, pois eram supostos autores de crimes comuns ou corriqueiros e, ainda, por não serem personagens proeminentes. Tinham, possivelmente também por isso, suas liberdades habitualmente barganhadas. Lá, no dia a dia do sistema de Justiça criminal, era a convivência ordinária e a pressa para dar fim às lides, reduzindo, por consequência, o volume dos processos, que forneciam subsídios morais para a violação de certos preceitos basilares do processo penal.

Assim, a Justiça que na prática é distribuída no Brasil é baseada em relações pessoais e não em preceitos liberais e republicanos, como demonstram não apenas a minha, mas outras pesquisas sobre o sistema de Justiça. A pessoalidade, portanto, acaba agravada em um caso de repercussão como esse e, ainda mais, dotado de conotações político-partidárias. É também ela que permite aos agentes empreender mais esforços, mais “carga”, quando o réu, por diferentes motivos, é considerado abjeto a seus olhos. Dessa forma, se, por um lado, as trocas de mensagens entre agentes públicos não são, em si, uma excepcionalidade, por outro as violações de direitos e garantias decorrentes de tais contatos, sejam elas corriqueiras ou extraordinárias, devem chocar aqueles que têm apreço pelo que convencionamos chamar estado democrático de direito.

Izabel Nuñez é antropóloga e advogada. Pesquisadora do PNPD/Capes no PPGA/UFF e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT/INEAC). Integra a Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB/RJ. O GLOBO

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