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A nossa cotidiana guerra de todos contra todos Leia mais: https://epoca.globo.com/a-nossa-cotidiana-guerra-de-todos-contra-todos-23249436#ixzz5XXGm4LL2 stest

 Estacionamento irregular no centro do Rio de Janeiro Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Estacionamento irregular no centro do Rio de Janeiro - Pablo Jacob / Agência O Globo

Há quase 400 anos, Thomas Hobbes escreveu no “Leviatã” sobre a guerra de todos contra todos como sendo o estado natural do ser humano, e defendeu ser preciso que cada um ceda parte de sua liberdade ao soberano — que, aqui, podemos entender como o Estado (aos historiadores, filósofos e estudiosos da obra de Hobbes, peço desculpas pelas simplificações e imprecisões). Sem isso, diz o filósofo inglês, vivemos numa situação de guerra contínua, onde há “um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”. Parece o Rio de Janeiro ou qualquer outra grande cidade do país.

Nem só nas grandes desgraças da segurança pública o bellum omnium contra omnes dá as caras. Nas pequenas misérias cotidianas a nossa incivilidade, a nossa agressividade desabrida escancaram o pouco apreço que temos ao outro e ao Estado — este, em contrapartida, também nos trata com pouca consideração. Como pontificou Hobbes, sem ninguém para regular a vida em sociedade, o pega-pra-capar vira regra e nada (economia, artes, ciências) vai adiante. O ser humano é, por natureza, egoísta. “És importante para ti porque só tu és importante para ti”, escreveu Fernando Pessoa.

Um exemplo prosaico está nos flanelinhas ou guardadores de carros. Excetuando-se aqueles que, ungidos pela prefeitura, controlam os espaços regulamentados de estacionamento, os demais estão, no fim das contas, cobrando do cidadão por aquilo que já é dele. É como catar um bocado de neve e vender a um esquimó. Nas ruas onde o Estado não meteu o bedelho, parar o carro é livre, a rua é pública — aquela palavra que, na maioria dos países, significa “de todo mundo”, mas que nesta terra tropical está definida como “de ninguém, logo pode ser minha também”. No fim das contas, o que um guardador clandestino vende ao motorista é a manutenção do veículo como está, sem um amassado a mais ou um vidro a menos. O que, na última vez em que olhei o Código Penal, poderia ser enquadrado como extorsão.

O mesmo cabe para a invasão da propriedade privada. Não importa se é terreno baldio, casa, apartamento, prédio. Se é devoluta, cabe ao Estado desapropriar, pagar o valor arbitrado e fazer o que bem entender. De resto, é esbulho possessório, crime. Não me lembro de ver na Constituição Federal qualquer movimento, ONG, partido ou indivíduo revestido da autorização legal para decidir, como um deus, quem está ou não atendendo à “função social da propriedade”. Mas, como sociedade, tratamos hordas de invasores como algo tolerável, damos o nosso like para à tomada, na porrada ou na bala, de fazendas e outros imóveis, infectados pela Síndrome de Robin Hood. Desde que a propriedade não seja minha, claro, todas as demais podem ser invadidas.

Até na banal poluição sonora transpira o nosso desamor ao próximo. Se o cidadão quer ouvir música alta até os tímpanos sangrarem, é direito dele. Mas arrastar para o desespero sonoro vizinhos ou passantes é sapatear na civilidade. E nem entra no rol dos crimes: perturbar o sossego de alguém é uma prosaica contravenção penal, algo tão anacrônico quanto polainas ou pince-nez.

A brutalidade nossa de cada dia se revela no lixo jogado na rua (no Rio, pelo menos, é passível de multa), no semáforo vermelho ignorado, no ato de estacionar em vagas para idosos ou deficientes, na pequena corrupção na blitz da polícia. Estado de Direito é um negócio chato, mesmo. A vida, seguindo as regras, fica menos malemolente, mágica, improvisada. E um tantinho mais correta.

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Ainda no assunto do cumprimento da pena do ex-presidente Lula: agora, surge uma tese de que ele, aos 73 anos, está envelhecido e que já se fala em prisão domiciliar. Seria edificante ver a mesma solidariedade sendo prestada aos 7.072 detentos idosos em todo o país, segundo dados do CNJ de agosto deste ano, 1.492 deles com 71 anos ou mais. Vamos mandar todos para casa?

Giampaolo Morgado BragaJornalista Editor-assistente dos jornais Extra e O Globo




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