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Processo legislativo como balcão de negócios

*José Eduardo Faria, O Estado de S.Paulo

07 Novembro 2017 | 03h01

Ao aceitar denúncia do Ministério Público Federal, levando um ex-presidente da República – acusado de venda de medidas provisórias (MPs) – a responder por crime de corrupção, a Justiça Federal colocou na ordem do dia o problema da mercantilização das decisões do poder público – o toma lá dá cá, o do ut des do Direito Romano numa variante caricata, que imprime às relações políticas um cálculo racional-instrumental irresponsável. Umas 29 MPs teriam sido negociadas com empresas em troca de propina. Essa instrumentalização imoral de MPs evidencia uma inversão de valores. No processo legislativo de uma democracia que dá prioridade ao interesse público, o caráter geral das leis releva as particularidades dos casos específicos. Num Congresso convertido em balcão de negócios, as particularidades prevalecem.

A ação em que um ex-presidente é réu tem visibilidade não difere das demais ações abertas com base nas investigações das Operações Lava Jato e Zelotes. Elas apontam o grau de decomposição do sistema político e do processo legislativo. Ao tornar financeiramente transacionáveis determinadas decisões públicas, muitos partidos converteram o dinheiro em padrão de suas ações e fizeram de sua função pública um negócio, maximizando ganhos privados. Cedendo ao lobby de empresas e/ou lhes oferecendo vantagens à custa dos interesses da coletividade, desprezaram os atributos fundamentais da democracia – como mandato, representação e separação entre privado e público. A política democrática tem que ver não só com quem decide, mas também com o modo como se decide e como os cidadãos percebem a intervenção legislativa na vida social. Quando é minada pela corrupção, que leva as relações público-privadas a serem realizadas na penumbra, essa política destrói os alicerces da sociedade e mina a confiança no processo decisório.

Resultante de uma corrupção endêmica, que corrói o pacto moral básico do qual dependem a vitalidade e a legitimidade do sistema representativo, a privatização do processo legislativo contrasta com a imagem que o Parlamento passa à sociedade. Veja-se este texto do site de uma de nossas Casas legislativas: “A solução dos conflitos, numa sociedade democrática, é feita pela construção de um acordo entre as diversas partes da sociedade, que se expressa na promulgação de normas. A construção desse acordo, que permite a convivência na sociedade entre interesses contrários, acontece através de debates e votações. Esse debate, que transforma a proposta de uns em norma aceita por todos, é a essência da democracia. Para que seja transparente, deve ser feito com regras claras. Deve ser público para que todos possam dele tomar parte e ter informações. O processo legislativo é a atividade que garante a publicidade dos debates, das decisões e da construção de acordos políticos”.

Já admitida em delação premiada pelos controladores da Odebrecht, descrita em detalhes pelo doleiro do PMDB Lúcio Funaro e evidenciada pelas denúncias de que algumas montadoras mercadejaram com o Executivo a prorrogação de incentivos fiscais, a instrumentalização imoral de MPs mostra o quanto esse texto está descolado da realidade. Uma coisa é a autoimagem do Legislativo, outra é como ela se comporta nas votações, ainda que a encenação da tomada de decisões seja pública. A simples existência formal de uma democracia representativa não garante que decisões de interesse público sejam tomadas democraticamente. Uma coisa é a democracia como sistema legítimo de organização política, capaz de atuar como vértice ordenador da sociedade; e outra são as interações e constrições que balizam essas decisões, com suas contingências e seus riscos.

Diante da distância entre o que a democracia deveria ser e o que ela de fato é, há quem criminalize a política, desdenhando do regime democrático. É uma atitude de descrença nas instituições que abre caminho para aventureiros moralistas. Mas também há quem lembre que, por ser a política tão necessária quanto o oxigênio que respiramos, só por meio dela se pode depurar a democracia. Como explicam sociólogos influenciados pela teoria dos sistemas, a democracia é mais do que um mecanismo de representação baseado na regra de maioria. É, também, um processo de aprendizagem da decepção. Por tornar viável a desconfiança, a crítica e a impugnação, a democracia opõe a transparência à opacidade. E isso torna possível a identificação de políticos corruptos e indignos de exercer o mandato. São justamente os enganos e as frustrações dos eleitores que permitem a depuração da política e a renovação de lideranças partidárias. Paradoxalmente, o que parece ser fragilidade da democracia é, justamente, sua força.

Por mais desmoralizado que o Congresso se encontre, por mais fragmentado que esteja o sistema partidário e por mais que políticos venais sigam o mesmo breviário no campo moral, a democracia permite que quem quiser mudar de oração e de cântico troque de igreja e passe a protestar, denunciar e lembrar aos políticos que o resgate da credibilidade do processo legislativo exige não só respeito à lei, mas também à ética pública. Evidentemente, pela forma perversa como as instituições estão estruturadas, a democracia brasileira não goza de saúde invejável. Contudo, mesmo sendo manipulada pelos poderes subterrâneos de empresas, sofrendo uma sucessão de escândalos e enfrentando forte tensão entre os Poderes, por causa do protagonismo de alguns operadores do Direito, ela tem suportado os testes de estresse a que tem sido submetida. Se conseguirá enfrentar as tensões e os desafios que surgirão caso reformas institucionais não sejam aprovadas e o pleito de 2018 não propicie a formação de uma colisão majoritária e coesa, possibilitando relações mais harmoniosas entre os Poderes e assegurando condições mínimas de governabilidade, esse é outro problema.

*Professor titular da Faculdade de Direito da Usp e professor da fundação Getúlio Vargas 

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