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Assembleias viram celeiros de leis que oneram cofres públicos e empresas

RIO, SÃO PAULO E BRASÍLIA — A criatividade de deputados estaduais parece à prova dos rombos nas contas públicas e alheia à lenta recuperação da economia. Levantamento do GLOBO em assembleias de Rio, São Paulo e Minas Gerais e na Câmara do Distrito Federal encontrou dezenas de leis propostas desde 2017 que criam despesas para os já combalidos caixas estaduais sem atacar prioridades ou que geram excesso de regulação, elevando os custos das empresas e prejudicando o ambiente de negócios.

 

No anedotário legislativo há desde textos que tocam em áreas importantes, como saúde e educação, mas desconsideram seu impacto fiscal e a hierarquia de prioridades, até normas sem benefícios claros para a economia e a sociedade ou que só contemplam categorias específicas. Paralelamente, agendas de ajuste das contas e desburocratização têm dificuldades de avançar.

 

Em Minas Gerais, cujo déficit fiscal deve atingir R$ 11,3 bilhões em 2020, uma série de projetos na assembleia do estado (ALMG) para a educação tem objetivos tão difusos como a inclusão no currículo de conteúdos da filosofia do kung fu ou a impressão do Hino Nacional no material didático. Há dois anos, um projeto queria tornar obrigatório mel de abelha na merenda. Inciativas que parecem de custo baixo, mas que, juntas, vão na direção de mais gastos em escolas com necessidades mais urgentes.

 

Esses textos ainda não foram aprovados. No Rio, os deputados foram mais longe e aprovaram, em 2017, o programa de inclusão da polpa do fruto da palmeira juçara na merenda.

— Uma lei que não seja importante o suficiente em um momento de crise pode criar distorção ainda maior no orçamento — diz André Luiz Marques, coordenador do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper. — Quando o Legislativo propõe uma nova lei, gera demanda por regulação, fiscalização e energia do Executivo. Toda essa catraca de execução gera custos que poderiam ir para outra atividade.

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É justamente da falta de foco que se queixam os professores da rede estadual mineira, cujos salários têm sido pagos em parcelas, em quantias abaixo do piso. Dentro das escolas, faltam até carteiras.

— Parece que os deputados não conhecem a situação das escolas — reclama um professor em Belo Horizonte, que não quis ser identificado, citando o exemplo de um diário eletrônico introduzido para registro do desempenho dos alunos que não funciona nas escolas sem internet. — Alguns colegas anotam em papel e levam para casa para passar para o digital. Ou pagam plano de celular do próprio bolso.

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Com placa, mas sem raios-x

No Rio, uma lei de 2018 obrigou todas as unidades de saúde da rede estadual a exibir uma placa informando que a unidade é do Sistema Único de Saúde. Na UPA de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte do Rio, cumpre-se a lei com uma pequena inscrição no letreiro do pátio e um papel colado com fita crepe no corredor. Mas ali faltam remédios e, na última quarta-feira, o aparelho de raios-X estava quebrado.

— Os pacientes recebem a receita, mas não encontram os medicamentos na farmácia daqui. A placa é o de menos — reclamou a professora Rose Berrondo, de 55 anos, enquanto esperava atendimento.

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O caso do Rio chama mais a atenção porque, depois do colapso nas contas, o estado entrou no Regime de Recuperação Fiscal (RRF) . Mas, como explica o especialista em contas públicas Raul Velloso, isso legalmente não impede iniciativas dos deputados que geram despesas. Em março, a Alerj foi criticada por criar verba de gabinete de R$ 26,8 mil para cada um dos 70 parlamentares. A verba é facultativa, mas o impacto orçamentário anual pode chegar a R$ 22,5 milhões.

No Distrito Federal, a Câmara Legislativa (CLDF) aprovou — mas foi vetada pelo governo distrital — a anistia de juros e multa em dívidas de bombeiros e policiais militares. Segundo o autor do projeto, deputado Roosevelt Vilela (PSB-DF), a medida ajudaria esses servidores a quitarem dívidas antigas, que foram crescendo por conta de juros e multas.

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 De acordo com o deputado, funcionários que vieram de fora do DF recebiam gratificação de quatro salários ao se aposentar para retornar aos locais de origem. Anos mais tarde, uma auditoria foi realizada, e o estado passou a cobrar alguns desses servidores por terem recebido o dinheiro e não comprovado a mudança.

— O cara recebeu na época R$ 20 mil. Com o tempo vieram correção, juros, multa, quanto ele deve hoje? R$ 200 mil — disse o deputado.

Vilela diz que essa dívida é impagável e, por isso, apresentou o projeto. Segundo o governo, a medida traria impacto orçamentário por transformar o benefício dado pela lei em renúncia fiscal permanente.

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Líderes defendem as casas

Concessionárias de serviços públicos também são alvo frequentes dos deputados. Este ano, a Alerj decidiu que a Cedae deve voltar a aplicar tarifas sociais a igrejas. Também obrigou a instalação de compartimentos de bagagem nos trens. A Supervia informou que já tem alguns vagões com bagageiros, mas, para instalar em todos, teria de retirar parte da frota de circulação, prejudicando os passageiros. Por isso, foi à Justiça contra a lei.

Presidente da Alesp, Cauê Macris (PSDB) argumenta que não há mecanismos para restringir projetos, já que os deputados têm legitimidade para propô-los. O presidente da Alerj, André Ceciliano (PT), diz que busca estimular o bom senso dos parlamentares e que a Casa tem aprovado “matérias duras” desde a crise, como aumento da contribuição previdenciária e patronal, e “está dando exemplo de austeridade”, economizando R$ 1 bilhão entre 2017 e 2019 do seu orçamento. Os presidentes da ALMG e da Câmara do DF não se pronunciaram.

Douglas Almeida, coordenador de mobilização da Casa Fluminense, organização social voltada para políticas públicas no Rio, admite que a produção da Alerj é irregular, originando às vezes leis desnecessárias como a que exigia habilitação para patinetes elétricos (vetada em julho pelo governador), mas vê melhora:

— Com a crise, a população está mais de olho na Alerj, e a renovação no quadro de deputados gerou comissões mais atuantes e atentas à escassez de recursos. Este ano, a Casa aprovou, por unanimidade, a mudança na gestão do Bilhete Único, exemplo de lei de alto impacto, baixo custo e que seria impossível em gestões anteriores.

A criatividade dos parlamentares

Propostas aumentam gastos com servidores

Apesar de a folha de pagamentos ser um dos principais problemas dos estados em crise, não faltam iniciativas nas assembleias para aumentá-la. A Alerj, por exemplo, aprovou em 2018 uma lei que estabelece um efetivo mínimo para conjuntos sinfônicos da Polícia Militar e dos Bombeiros do Rio. A PM vive há anos um déficit crônico de agentes para as ruas. Também tramitam na Casa projetos para a convocação de concursados e a adoção de novos planos de carreiras com gratificações. Na Assembleia de Minas, foi proposta a contratação de fisioterapeutas para atuar 24 horas por dia em UTIs adultas, pediátricas e neonatais na rede pública de saúde estadual.

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Leis criam despesas na educação sem atacar o essencial

Com cofres vazios, estados têm dificuldade para manter o básico nas escolas públicas, mas os deputados de Minas têm várias propostas que, juntas, representam mais gastos na educação sem estabelecer prioridades. Entre elas, ter “a filosofia chinesa” do kung fu no currículo, impressão do hino nacional em todos os materiais didáticos, inscrição do grupo sanguíneo de cada aluno nos uniformes e a inclusão de mel na merenda escolar. No Rio, foi aprovado um programa de inclusão da polpa do fruto da palmeira juçara nas escolas. A Alerj também autorizou um sistema na rede pública para avisar pais por SMS sobre presença dos alunos.

Soluções acessórias ampliam custos na saúde e renúncia fiscal

Enquanto a rede pública de saúde não consegue oferecer atendimento satisfatório em especialidades essenciais, a Assembleia de São Paulo discute serviço gratuito de podologia (cuidados para unhas) na rede estadual e a distribuição gratuita de filtro solar a todos os pacientes que já trataram câncer de pele. Em Minas Gerais, um projeto prevê a distribuição de repelentes em maternidades. Já no Distrito Federal, a Câmara aprovou a anistia de juros e multa em dívidas de bombeiros e policiais militares. O governo vetou a medida, alegando que ela traria impacto orçamentário por transformar o benefício dado por uma lei em renúncia fiscal permanente.

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Datas comemorativas e homenagens

Embora não faltem prioridades na realidade da maioria dos estados, deputados estaduais dedicam boa parte de suas iniciativas a homenagens. Há particular interesse por datas comemorativas. Na Assembleia do Rio, há uma iniciativa para criar o Dia do Designer de Sobrancelhas. Na de Minas, há uma profusão de ideias similares, como a criação do Dia Estadual do Cigano e a data que homenageia o Quadrilheiro Junino. Houve uma proposta para instituir o Dia do Coach (orientador de carreiras), mas o projeto foi tirado de tramitação. A ideia de um dia oficial dedicado ao cavalo campolina foi arquivada, mas o da raça mangalarga marchador virou lei.

Contratações obrigatórias para favorecer categorias

Projetos de lei obrigando a contratação de determinados profissionais nos setores públicos e privado são recorrentes e revelam os grupos com maior lobby. Há muitos projetos favorecendo a contratação de profissionais de educação física, por exemplo. Um tem movimentado a Alerj ao prever a obrigação de ter um profissional desses em academias de condomínios. Outro projeto no Rio tentou obrigar lojas de suplementos vitamínicos a terem nutricionista de plantão, mas foi arquivado. Um projeto que aguarda segunda discussão na Alerj determina brinquedotecas em hospitais e chegou a receber uma emenda prevendo a contratação de “brinquedista”.

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Legislação sem efetividade ou sobre o que já existe

Muitas propostas de deputados estaduais não chegam a ser aprovadas ou são derrubadas pela Justiça depois de virar lei por contrariarem a Constituição ou legislar em temas sem atribuição das Assembleias. Há projetos para temas já regulados por leis federais ou difíceis de implementar, como um em Minas que pretende estipular idade mínima para acesso a redes sociais no estado. Em São Paulo, um projeto impede venda casada de pacotes de TV, telefonia e internet, o que já é disciplinado pela Anatel. No Rio, uma lei cria delegacia especializada em crimes sexuais contra criança, mas já existem unidades para menor vítima.

(*Estagiário sob supervisão de Alexandre Rodrigues) O GLOBO

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