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Lula não falou para Moro, mas para as câmeras

Colecionador de processos, Lula foi denunciado nove vezes pela Procuradoria. Seis dessas denúncias viraram ações penais. Numa delas, foi condenado por Sergio Moro a nove anos e meio de cadeia. Com uma rotina penal tão intensa, o ex-presidente petista pode estar, paradoxalmente, ganhando uma nova razão para se manter ativo e retirar proveito de sua degeneração moral. Lula tornou-se um réu cenográfico. Nesta quarta-feira, não prestou propriamente um depoimento para o juiz da Lava Jato. Exibiu uma encenação para as câmeras da sala de audiências da Justiça Federal de Curitiba.

Ciente de que tudo seria divulgado, Lula pareceu desta vez mais preocupado em oferecer uma boa atração para quem o assistisse posteriormente na internet ou nos telejornais. Não conseguiu se defender. Ao contrário, consolidou a segunda condenação que Moro logo enfiará no seu prontuário. Elevou, porém, sua cotação artística. Intercalou uma irritação ensaiada com uma certa hipocrisia assumida. Coisa de quem sabe que seu enredo não sobrevive a um detector de mentiras. Mas agrada aos devotos que ainda o amam a ponto de enxergá-lo como um santo.

Lula foi ouvido na ação em que é acusado de receber R$ 13 milhões em propinas da Odebrecht. A verba veio na forma da aquisição de um apartamento vizinho de porta da cobertura onde mora o réu, em São Bernardo, e da compra de um terreno onde seria instalado o Instituto Lula. Na semana passada, o grão-petista Antonio Palocci, candidato a delator-companheiro, confirmara todas as acusações. Pior: dissera que Lula havia celebrado um “pacto de sangue” com a Odebrecht. Em troca de vantagens à construtora, amealhou um pacote de propinas de R$ 300 milhões para si e para o PT.

Indefeso, Lula portou-se como se tivesse a exata noção de que sua condição de mito está em via de se tornar apenas patrimônio artístico. Nada que possa ser legado aos netos. Mas o suficiente para compartilhar com seus fieis e cúmplices. Livrou-se de Palocci como quem afasta uma barata com o bico do sapato. Soou como se recitasse um texto decorado: “Eu vi atentamente o depoimento do Palocci. Uma coisa quase que cinematográfica, conheço o Palocci bem. O Palocci, se não fosse ser humano, seria um simulador. Ele é tão esperto que é que é capaz de simular uma mentira mais verdadeira que a verdade. O Palocci é médico, calculista, é frio.”

Moro cutucou: “Nada daquilo é verdadeiro?” E Lula: “Nada é verdadeiro. A única coisa que tem verdade ali é ele dizer que está fazendo a delação porque quer os benefícios da delação. Ou quem sabe ele queira um pouco do dinheiro que vocês bloquearam dele.” Com dois parágrafos, Lula reescreveu sua história, criando uma ficção sem Palocci. No mundo real de Lula, Palocci foi, nos últimos 15 anos, um escudeiro providencial. Era uma espécie de Sancho Pança de algibeiras cheias, cujo papel principal era fazer a interlocução do pagé do PT com a caciquia do empresariado.

Uma representante da Procuradoria recordou ao depoente: “O senhor Emílio Odebrecht, no depoimento prestado aqui ao juízo, informou que o senhor credenciou AntonioPalocci para ser a pessoa com quem a empresa faria contato via Marcelo Odebrecht e, no momento anterior a Marcelo Odebrecht, a Pedro Novis. Que o senhor credenciou Antonio Palocci…”

Lula atalhou a procuradora: “Posso responder? O Palocci não era da direção do PT, o Palocci não era tesoureiro de campanha, portanto o Palocci não cuidava de dinheiro. Ora, se alguém se apresentava para algum empresário utilizando o meu nome, é outros quinhentos, é uma outra ação que vocês vão ter que mover contra quem se aproveitou do meu nome. Mas nunca foi dada autorização ao Palocci, a quem quer que seja, para negociar recursos com qualquer empresário neste país.”

Até os porteiros da sede do PT sabem que uma das funções de Palocci era livrar Lula de cuidados banais, como as necessidades financeiras. Afinal, não se pode esperar que quem veio ao mundo pra salvar o Brasil se ocupe também de contactar a Odebrecht para pagar os seus confortos. No fundo, vem daí a impressão de Lula de que está sendo injustiçado por investigadores e magistrados mesquinhos, incapazes de perceber que todo o dinheiro movimentado ao seu redor, viesse de onde viesse, não era mais do que o merecido.

Palocci reconheceu ter participado da negociação para a aquisição do terreno para o Instituto Lula. Sergio Moro esfregou no nariz de Lula uma “mensagem eletrônica”. Indagou: O e-mail “não confirma o envolvimento do sr. Palocci nessa negociação?” Ao desconversar, Lula insinuou que o criminoso é seu ex-Sancho Pança: “…É problema dele se ele estava envolvido ou não. Só não quero que ele me envolva. Se ele está envolvido, se ele cometeu ilícito, ele que diga que cometeu.”

Manifestando-se por meio de uma nota dos seus advogados, Palocci traduziu Lula: ''Enquanto o Palocci mantinha o silêncio, ele era inteligente e virtuoso. Depois que resolveu falar a verdade, passou a ser tido como calculista e dissimulado. Dissimulado é ele, que nega tudo o que lhe contraria e teve a pachorra de dizer que se encontrava raramente com o Palocci a cada 8 meses.'' Essa briga tem enorme interesse público. Se pudesse, Moro talvez tivesse parafraseado Michel Temer: “Tem que manter isso, viu?”

Quanto ao apartamento vizinho ao seu, Lula reconhece que ocupa. Mas nega que seja o proprietário. Sustenta que apenas alugou o imóvel. O contrato foi assinado pela ex-primeira-dama Marisa Letícia. O suposto dono, Glauco da Costa Marques, é um “investidor” misterioso, providenciado por um amigão de todas as horas: o pecuarista José Carlos Bumlai. Ouvido no processo, Glauco declarou que não recebia aluguel da família Lula da Silva. Só começaram a lhe pagar depois que o pecuarista Bumlai foi preso pela Lava Jato.

“O senhor ex-presidente sabe explicar como foi pago o aluguel desse imóvel a partir de fevereiro de 2011?”, quis saber Sergio Moro. Lula transferiu a resposta para um cadáver: “A dona Marisa ficou com a responsabilidade de fazer o contrato e acertar aluguel, condomínio, IPTU, e outras coisas da casa. Era tudo ela que fazia.”

Não podendo interrogar a morta, o juiz insistiu com Lula: “O senhor Glauco da Costa Marques foi ouvido aqui em juízo e declarou que somente começou a receber o pagamento do aluguel do imóvel a partir do final de 2015, logo após a prisão do senhor José Carlos Bumlai, essa é a informação dele. O senhor ex-presidente tinha informação disso?”

Lula, como de hábito, não sabia: “Fiquei surpreso com o depoimento dele, porque nunca chegou a mim qualquer reclamação de que não se estava pagando aluguel. Porque ele declarava no Imposto de Renda dele que pagava aluguel, e eu declarava no meu Imposto de Renda que a dona Marisa mandava pro procurador o pagamento do aluguel.”

Moro não desistiu: “O senhor ex-presidente tem recibos dos pagamentos desses alugueis?” E Lula, com a firmeza de um pote de gelatina: “Tem recibo, deve ter, posso procurar com os contadores para saber se tem.” O juiz soava mais incômodo do que maquininha de dentista: “Salvo engano do juízo, os recibos não foram apresentados ainda. O senhor ex-presidente sabe o motivo?” Mas Lula parecia mesmo indefeso: “Eu não sei. Nem sei se já foi pedido ao advogado para apresentar.”

Uma das obsessões de Lula no seu papel de réu cenográfico, é a de se manter em cena com o figurino de um perseguido político. No não-depoimento de Curitiba, fez questão de caprichar nos ataques aos procuradores da força-tarefa da Lava Jato: “Eles inventaram que o tríplex era meu. Eles agora inventaram que o apartamento é meu e não é, e eles sabem disso. Como inventaram a história do sítio que é meu, e não é. Ou seja, três denúncias do MPF por ilação. Mas eu quero enfrentar o MPF, sobretudo a força-tarefa, pra provar a minha inocência. Eu só espero que eles tenham a grandeza de um dia pedir desculpa.”

Depois do encontro com Moro, Lula escalou um carro de som. No seu discurso, voltou a falar para a plateia de devotos que o escutava sobre as mentiras que o perseguem. Falou com tal convicção que ficou difícil discutir com tamanho especialista. No momento, o apelo do pajé petista, com suas barbas grisalhas, não parece ser eleitoral. Reduzido aos 30% que o PT tradicionalmente amealha nas pesquisas, Lula desperta nos cerca de 50% que o rejeitam um misto de ódio e curiosidade cômica.

Lula já não sabe se conseguirá levar adiante sua candidatura presidencial. Talvez tenha de se contentar com um script tipo B. Nele, Palocci é um espertalhão que comercializa sua influência sobre o mito, cobrando uns trocados por uma agenda com Emilio Odebrecht, dividindo os proventos com o objeto do desejo da oligarquia empresarial. No fim, todos acabam na cadeia. O que Lula deseja realçar com sua encenação é que, no seu caso, irá para a prisão não um culpado, mas um idealista incompreendido, que paga por suas más-companhias e pelas mentiras de um certo PowerPoint.

“Há muito tempo eu leio, escuto, converso com advogado e eu fico sabendo, todo mundo que é preso a primeira pergunta é: e o Lula? Você conhece o Lula? O Lula tava lá? Diga alguma coisa do Lula. Isso faz dois ano e meio, dr. Moro! Eu lamento profundamente que o senhor tenha feito a denúncia”, chegou a declarar Lula, sem se dar conta de que o magistrado de Curitiba o condenará pela segunda vez porque seu papel não é denunciar, mas julgar a consistência da denúncia que a pregação cenográfica do pseudo-perseguido não conseguiu desmontar. JOSIAS DE SOUZA

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