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Advogados confundem avanço com ‘inquisição’

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15.dez.2015 - Movimentação de policiais federais em frente à casa do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. A Polícia Federal faz nesta terça-feira (15), por ordem do STF (Supremo Tribunal Federal), uma operação de busca e apreensão na casa de Cunha. O deputado é acusado de corrupção e lavagem de dinheiro pela Procuradoria-Geral da República nas investigações da Operação Lava Jato Leia mais Fábio Motta/Estadão Conteúdo

Presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o ministro Ricardo Lewandowski afirma que, dos cerca de 600 mil brasileiros mantidos atrás das grades, pelo menos 240 mil são presos provisórios. Repetindo: algo como 40% dos detentos do Brasil não foram condenados. Alguns deles estão atrás das grades à espera de uma sentença há mais de uma década —11 anos num caso detectado pelo CNJ no Espírito Santo; 14 anos num processo do Ceará. No Piauí, os sem-sentença somam cerca de 70% da população carcerária.

Foi contra esse pano de fundo que a fina flor da advocacia brasileira divulgou na última sexta-feira um manifesto denunciando supostos abusos cometidos contra os presos da Lava Jato. A peça fala de “violações de regras mínimas para um justo processo''. Alega-se que estão sendo desrespeitados princípios elementares como a presunção de inocência, o direito de defesa e a garantia da imparcialidade. Reclama-se do excesso de prisões provisórias, da atuação da imprensa, do vazamento seletivo de informações sigilosas, da execração pública dos réus e da violação de prerrogativas dos advogados. O texto sentencia: a Lava Jato é “uma espécie de inquisição”.

Assinado por uma centena dos mais bem remunerados advogados do país, o manifesto de ataque à Lava Jato insinua a existência de uma orquestração urdida contra os presos endinheirados do maior escândalo de corrupção já detectado na República. De fato, a orquestração existe. Mas ela nasceu de uma parceria entre a política patrimonialista e a plutocracia no esquema de assalto ao Estado.

Partituras compostas de notas pretas, diretores de estatais levando na flauta, corruptos montados na gaita, o Planalto na regência, sempre na mesma toada, enquanto os presidentes da República dançam conforme a música: um chorinho bem brasileiro, cujo refrão é “eu não sabia”.

De todos os flagelos brasileiros o pior talvez seja o flagelo do sistema penitenciário. Os 600 mil presos estão empilhados em cadeias projetadas para oferecer pouco mais de 300 mil vagas. O quadro, por inqualificável, tornou-se fácil de qualificar. Qualquer zoológico oferece estadia mais decente. Vistos como sub-bichos, os detentos são submetidos a horrores como a superlotação, a insalubridade e, suprema desumanidade, a tortura.

Com as condenações do mensalão e as prisões da Lava Jato o noticiário sobre a situação carcerária migrou dos fundões da editoria de polícia para as manchetes de primeira página. Deve-se a migração à mudança de status dos encrencados. Desceram do Brasil da impunidade para a subcivilização que definha dentro das cadeias, onde subpessoas vivem e, sobretudo, morrem esquecidas por uma sociedade selvagem.

É o contato dos neopresidiários com o insuportável que provoca o estrépito de um manifesto como os dos doutores. O texto acusa a imprensa de publicar fotos dos presos e informações sigilosas. Execração pública! Sem mencionar-lhe o nome, o documento denuncia a parcialidade do juiz Sérgio Moro. Acinte! Tacha de “desnecessárias” as prisões de corruptos e corruptores. Inaceitável! “O Estado de Direito está sob ameaça”, gritam os signatários da peça, alguns deles (bem) remunerados pelos presos de grife.

“No plano do desrespeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados, a Lava Jato já ocupa um lugar de destaque na história do país”, escreveram os doutores. “Nunca houve um caso penal em que as violações às regras mínimas para um justo processo estejam ocorrendo em relação a um número tão grande de réus e de forma tão sistemática”, vociferaram.

Ah, que país extraordinário seria o Brasil se um grupo de advogados notáveis fizesse publicar um manifesto em defesa da legião de presos esquecidos em masmorras que fazem as prisões de Curitiba parecerem hoteis cinco estrelas. É pena que o manifesto dos doutores, veiculado nos três jornais de maior circulação (quem pagou?) não tenha mencionado os 240 mil presos provisórios amontoados nos fundões do sistema carcerário.

Essa clientela negligenciada pertencente à turma dos três pês —preto, pobre e puta. É gente sem dinheiro para o advogado. Numa entrevista ao blog, concedida em 2013, quando a população carcerária somava 540 mil enjaulados, o ministro Gilmar Mendes falou sobre o drama que os doutores fingem não enxergar (assista um trecho no vídeo abaixo).

Os doutores do manifesto acusam a imprensa de “pressionar instâncias do Poder Judiciário a manter injustas e desnecessárias medidas restritivas de direitos e prisões provisórias, engrenagem fundamental do programa de coerção estatal à celebração de acordos de delação premiada.” Nesse trecho, ofendem não os meios de comunicação, mas as togas de tribunais como o STJ e o STF, que têm mantido, em sucessivos despachos, as decisões proferidas na primeira instância pelo juiz Moro.

Pior: os doutores atentam contra suas próprias biografias. O texto soa como uma autoconfissão de inepcia. Houve violações e abusos? Por que diabos os advogados não conseguiram desmontar tais iniquidades nos inúmeros recursos que impetraram. Suprimiram-se direitos? Por que os réus, donos de fortunas que lhes permitem remunerar o melhor e mais caro time de defensores do país, continuam em cana?

Os doutores talvez não tenham percebido. Mas o Brasil atravessa uma quadra nova e alvissareira. Onde os advogados enxergam “uma espécie inquisição” não há senão sinais claros de avanço. Os advogados deveriam desperdiçar um naco do seu tempo relendo uma declaração feita pela ministra Carmen Lucia ao referendar a decisão do colega Teori Zavascki, que decretou a prisão do senador Delcídio Amaral, ex-líder do governo Dilma no Senado.

Disse Carmen Lucia: “Na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 [do mensalão]. E descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade, impunidade e corrupção. Não passarão sobre os juízes e as juízas do Brasil. Não passarão sobre novas esperanças do povo brasileiro, porque a decepção não pode estancar a vontade de acertar no espaço público. Não passarão sobre a Constituição do Brasil.”

Definitivamente, essas não são palavras de uma magistrada pressionada ou constrangida. JOSIAS DE SOUZA

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