A ‘gamificação’ dos penduricalhos
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Algumas vozes da cúpula do Judiciário parecem ter tomado a necessária coragem de expressar o seu incômodo com o sucesso da pauta corporativista da magistratura. Ainda que isoladas, essas críticas atacam o insaciável apetite das associações de juízes por mais e mais penduricalhos. Autoridades, enfim, começam a catalisar o sentimento de perplexidade da sociedade.
Um exemplo é o ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. No dia 22 de setembro, no Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), na sua última sessão como corregedor-geral, ele comparou o avanço dos penduricalhos às fases de um videogame. Ou seja, a cada ato que um magistrado pratica, como uma audiência, uma sentença ou uma carta precatória, ele recebe um bônus. É o que chamou de “gamificação”.
Vieira de Mello manifestou o seu inconformismo antes de tomar posse como presidente do CSJT e do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Ao negar a criação de um penduricalho, ele recomendou a atuação dos conselhos, entre eles o que agora comanda, guiada por “valores da República”, lamentando que, naquela sessão, 40% da pauta era sobre “questões remuneratórias”.
Vale lembrar que o último presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luís Roberto Barroso, editou uma resolução que abriu a porteira dos penduricalhos. Ele chegou a dizer que os juízes merecem ganhar mais, haja vista que muitos deixam a carreira para ingressar na advocacia, embora não se tenha notícia da perda do interesse pela magistratura.
Em seu desabafo, Vieira de Mello até provocou ao questionar “quem está ganhando mal”. Disse desconhecer.
Um juiz em início de carreira ganha acima de R$ 30 mil e, não raro, com os penduricalhos, logo receberá acima do teto do funcionalismo, que é o subsídio mensal de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), de R$ 46,4 mil. E, diferentemente do tempo de Vieira de Mello, quando um juiz fazia “audiências no período da manhã e da tarde, cinco dias da semana”, agora há quem trabalhe só na “escala TQQ”: terça, quarta e quinta.
Trata-se da jornada de muitos magistrados que ainda querem home office para sempre, segundo o corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell, em entrevista ao Estadão. Como disse Campbell, tem “juízes ganhando uma fábula, se comparados com um trabalhador comum, e ainda por cima não querem residir na comarca”. Enquanto isso, o trabalhador comum pede o fim da jornada 6x1 e perde duas horas por dia no transporte público.
Não é de agora que este jornal rechaça o que hoje os ministros criticam. Como disse Vieira de Mello, com razão, essa profusão de penduricalhos precisa parar, a remuneração dos juízes deve ser definida em lei – ou seja, pelo Congresso, e não por conselhos – e a magistratura precisa ter consciência de suas responsabilidades e ser mais transparente.
No Brasil, um juiz não ganha mal, não trabalha muito nem tem uma vida sofrida – ao contrário. Por isso, essa corrida de videogame em que só os magistrados ganham e toda a sociedade perde precisa chegar ao fim.