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Alguém tem vergonha na cara

Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP

 

 

Se Diógenes estivesse por aqui com sua lanterna, em sua busca vã por um homem com vergonha na cara, talvez o tivesse finalmente encontrado. Neste país em que levar vantagem ganhou até uma lei, a de Gérson, eis que alguém resolveu recusar um indecente privilégio a que tinha direito, porque, ora vejam, atenta escandalosamente contra princípios elementares da boa moral. Como não é todo dia que isso acontece, como bem sabe o velho Diógenes, o caso tornou-se digno desta nota.

 

Como noticiou o Estadão, o promotor de Justiça aposentado Jairo de Luca, inconformado com a decisão do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) de engordar seu contracheque em R$ 1,3 milhão em razão de um penduricalho chamado de “compensação por assunção de acervo”, não só recusou o benefício, como ainda ajuizou uma ação popular no Supremo Tribunal Federal (STF) para acabar com essa farra.

 

A tal “compensação por assunção de acervo” significa um dia de folga a cada três dias trabalhados sob a alegação de um suposto excesso de serviço, limitando o período de descanso a dez dias por mês, que pode ser convertido em dinheiro. Pela via administrativa, dá-se um aumento de até um terço do salário, estourando, não raro, o maltratado teto constitucional de R$ 46,3 mil. No caso do MP-SP, o pagamento retroativo foi autorizado em fevereiro deste ano.

 

De Luca soube que receberia essa verba, mas não tinha nem ideia do valor que lhe era devido. Ele então questionou o MP-SP, descobriu que a bolada retroativa era referente ao período de 2015 a 2023 e optou por declinar.

 

Na ação popular sob relatoria do ministro Edson Fachin, o promotor aposentado ataca uma resolução e uma recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que, editadas pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, abriram brechas para os pagamentos milionários. Ele pede que o STF as declare nulas. Primeiramente porque esses pagamentos se dão ao arrepio da lei – ou seja, trata-se de uma flagrante ilegalidade, haja vista que não foram criados pela via legislativa. Não caberia a um órgão administrativo instituir benefícios.

 

De Luca mostrou que o CNMP afirmou ter se baseado nas Leis 13.093 e 13.095 para criar o penduricalho ao mesmo tempo em que as afrontou. Essas legislações foram aprovadas em 2015, o ano ao qual o MP-SP retrocedeu a benesse, para beneficiar juízes federais e do Trabalho com uma gratificação de natureza remuneratória. Portanto, sujeita ao abate-teto e ao Imposto de Renda. Mas os normativos do CNMP criaram indenizações que furam o teto e não pagam tributos.

 

Para piorar, esse penduricalho pode ser pago até mesmo para o promotor que acumula (ou atrasa) serviço em seu próprio gabinete, e não apenas no caso de ter recebido temporariamente o acervo de um colega ou ter executado uma outra função. Como esses penduricalhos se espalham em efeito cascata em razão de uma tal simetria entre as carreiras do MP e da magistratura, De Luca escreveu, com razão, que “não se consegue vislumbrar embasamento legal” para que promotores, procuradores e juízes recebam a mais para realizarem “tarefas intrínsecas aos próprios e respectivos cargos”.

 

A recente profusão de verbas indenizatórias a essa elite do funcionalismo público causa espanto. Há casos de contracheques que chegam a R$ 700 mil por mês na folha de pagamentos desses órgãos.

 

Especializada em pesquisas sobre o sistema de Justiça, a plataforma Justa mostrou, em estudo recente, que houve um crescimento de 48% em média nos contracheques do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) neste ano em relação a 2023. Com 87% dos magistrados com salários acima do teto, a Corte já consumiu 84% dos R$ 11,9 bilhões previstos para despesas com pessoal em apenas oito meses. Não surpreenderá ninguém se o Judiciário ou o MP-SP passarem o pires pedindo mais dinheiro ao Executivo.

 

Diante desse cenário, oxalá o STF tome uma decisão moralizadora. Se nada mudar, talvez esteja na hora de mudar o orçamento do Judiciário e do MP, a começar por lhes cortar verbas, pois, com tanto pagamento sem merecimento e acima do teto, é evidente que tem sobrado dinheiro. Quem sabe assim todos tomem vergonha na cara.

 

MAÕS NA CARA VERGONHA NA CARA

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