Sanção de Trump, acusação 'documentada' e defesa das urnas: 1º dia de julgamento da trama golpista no STF é marcado por recado de Moraes e bronca em advogado
Por Daniel Gullino / Mariana Muniz , Sarah Teófilo, Ivan Martínez-Vargas e Camila Turtelli — Brasília / O GLOBO
Primeiro dia de julgamento da trama golpista no Supremo Tribunal Federal (STF) começou com críticas do relator da ação, ministro Alexandre de Moraes, a tentativas de interferência externa no processo. Sem citar diretamente sanções aplicadas contra ele e a outros magistrados pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o relator da ação penal que tem o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados como réus disse que a "soberania nacional" jamais será "vilipendiada, negociada ou extorquida". A sessão também foi marcada pela apresentação do procurador-geral da República, Paulo Gonet, que detalhou como a tentativa de golpe foi "documentada", e pela bronca da ministra Cármen Lúcia a um advogado que comparou a adoção do voto impresso com a possibilidade de auditar as eleições.
O julgamento foi interrompido no fim da tarde desta terça-feira após a apresentação das defesas de cinco dos oito réus. Pelo cronograma traçado pela Primeira Turma da Corte, a análise do caso será retomado a partir das 9h desta quarta-feira, com os argumentos dos advogados do general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro. A previsão é que os votos dos ministros só sejam conhecidos a partir da semana que vem.
Antes de apresentar o relatório da ação penal, Moraes fez uma defesa da Corte na condução do processo e rebateu críticas à pressão do governo dos Estados Unidos e à defesa de uma anistia para os envolvidos.
Sem citar diretamente os pedidos de anistia, Moraes afirmou que a "impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação". Os defensores de um perdão para os envolvidos nos atos golpistas do 8 de janeiro costumam citar como objetivo a "pacificação" do país.
— A História nos ensina que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação. Pois o caminho aparentemente mais fácil, e só aparentemente, que é da impunidade, que é da omissão, deixa cicatrizes traumáticas na sociedade — afirmou o relator.
Moraes também afirmou que foi descoberta uma "verdadeira organização criminosa" que teria tentado coagir o STF e submetê-lo "ao crivo de outro Estado estrangeiro". Embora também não tenha os citado nominalmente, ele se referia a Bolsonaro e ao filho deputado, Eduardo Bolsonaro (PL-SP), indiciados no mês passado por tentativa de atrapalhar o processo da trama golpista ao defender sanções dos EUA contra ele e outros ministros.
Em julho, o governo Trump anunciou que Moraes foi sancionado com base na Lei Magnitsky, que prevê o bloqueio de bens, como contas bancárias, investimentos financeiros e imóveis, por exemplo. A lei também inclui o banimento de entrada nos Estados Unidos e a proibição de negociar com empresas e cidadãos americanos.
Gonet diz que plano golpista foi 'documentado'
Logo no início de sua fala, Gonet rebateu um dos principais argumentos das defesas,
a de que tudo não passou de discussões e não houve, de fato, uma tentativa de golpe. Para o procurador-geral da República, contudo, para que a tentativa de golpe se consolide, não seria preciso uma ordem assinada pelo presidente da República e as articulações antidemocráticas não podem ser tratadas como um "plano bonachão".
— O apoio da organização criminosa a acampamentos em frente a quartéis em várias localidades, em especial em frente ao quartel general do Exército, em Brasília, onde se clamava abertamente por intervenção militar, intervenção federal por parte das Forças Armadas igualmente se insere no contexto da atuação efetiva, por atitude de ruptura com a democracia por meio da violência — afirmou ele.
Gonet afirmou ainda que documentos encontrados com os investigados previam "medidas de intervenção inaceitáveis constitucionalmente". Bolsonaro admite ter conversado com os comandantes das Forças Armadas sobre alternativas ao resultado eleitoral, mas alega que foram discutidos apenas instrumentos previstos na Constituição.
Advogado de Cid anuncia 'baixa' de militar do Exército
Primeiro advogado a falar na tribuna do plenário, Jair Alves Pereira defendeu a validade da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, colocada em xeque pelas defesas de outros réus, que alegam uma suposta coação do ex-ajudante de ordens pela Polícia Federal e por Moraes. Segundo o defensor, contudo, a colaboração foi voluntária e confirmada em mais de uma oportunidade pelo STF.
— Eu posso não concordar com o relatório, com o indiciamento do delegado e, de fato, não concordo. Agora, nem por isso eu posso dizer que ele coagiu o meu cliente ou que ele cometeu uma ilegalidade. Não posso dizer que ele e o ministro Alexandre de Moraes me coagiram, porque não seria verdade — afirmou o advogado.
As defesas do ex-presidente Jair Bolsonaro e do general Braga Netto contestam a delação de Cid justamente indicando, dentre outros pontos, que ele foi coagido por temer punição a familiares. A defesa de Bolsonaro afirmou que "suas declarações, desde o princípio, não resultam de ato voluntário e nem estiveram pautadas na verdade". Já os advogados de Braga Netto afirmaram que a delação contém uma série de "vícios", como a falta de "voluntariedade do delator" e a "coação" por parte da Polícia Federal.
Na sequência, Gonet defendeu a condenação dos acusados pela trama golpista, também com críticas às iniciativas que buscam anistia para os envolvidos na trama golpista. Ele argumentou que a impunidade poderia "recrudescer ímpeto de autoritarismo" e colocar "em risco o modelo de vida civilizado". O chefe do Ministério Público foi o segundo a falar na sessão que analisa a ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados por tentativa de golpe.
— Não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem, como mostram relatos de fato, aqui e no estrangeiro, recrudesce o ímpeto de autoritarismo e põe em risco um modelo de vida civilizado — disse Gonet.
Durante sua sustenção oral no julgamento, o advogado afirmou que Cid "pediu baixa" do Exército. A expressão se refere ao desligamento do militar dos quadros das Forças Armadas. Segundo o defensor, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro "não tem mais condições psicológicas" de continuar nos quadros das Forças Armadas após virar delator no processo.
A carreira militar do tenente-coronel ficou congelada durante a tramitação da ação penal a que responde STF. Nessa condição, Cid não poderia ser promovido e o seu nome foi retirado da lista de promoção por antiguidade ou merecimento. Ele ainda poderia responder por crime militar devido aos fatos analisados.
Cid responde a cinco crimes — organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. A soma das penas pode chegar a 43 anos de prisão.
Apesar do acordo de delação premiada firmado em 2023, homologado por Moraes, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu ao Supremo que Cid seja condenado. Em manifestação nesta manhã, o procurador-geral Paulo Gonet criticou o “caráter seletivo” da colaboração e disse que ela não afasta a responsabilidade do militar.
Defesa de Ramagem toma bronca de Cármen
Após o advogado de Cid, foi a vez da defesa do ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e atual deputado federal, Alexandre Ramagem, apresentar seus argumentos de defesa. O advogado Paulo Renato Garcia Cintra Pinto afirmou que a denúncia da PGR comete erros fáticos "graves" a respeito de Ramagem, citando o suposto acesso ao software FirstMile, que teria sido usado de maneira irregular no âmbito da chamada Abin paralela.
— O MPF afirmou que Ramagem não apenas teria ciência da utilização irregular dessa ferramenta (o software Firstmile) pelo serviço de inteligência, como tinha acesso ao sistema. Ocorre que a autoridade policial não fez alusão ao log de acesso a sistema algum — disse.
O defensor ainda reiterou alegação de que os textos encontrados pela PF com Ramagem nas quais ele questiona a lisura do processo eleitoral e das urnas eletrônicas eram apenas "anotações".
— Ele sempre falou: "Eu sempre faço anotação de tudo. Meu computador é um mar de anotações" — disse o advogado. Cintra frisou que não existem elementos que comprovem que essas anotações foram entregues ao ex-presidente da República.
Já ao fim da sustentação oral, o advogado foi interrompido pela ministra Cármen Lúcia, que em tom de reprimenda disse que "o processo eleitoral é amplamente auditável". Atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra demonstrou incômodo após o defensor citar as dúvidas levantadas por seu cliente à lisura do sistema eleitoral. Assista abaixo:
Defesa de Garnier reclama de 'fatos novos' em acusação
Na sequência do julgamento, o advogado Demóstenes Torres, responsável pela defesa do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, reforçou em julgamento da trama golpista o pedido rescisão da delação premiada de Cid. Ele também fez críticas à acusação apresentada pela PGR.
— Eu acredito que o procurador-geral da República feriu o princípio da congruência, porque nas alegações finais ele aponta dois novos fatos que não existem na denúncia. E o Supremo Tribunal Federal e o artigo 384 do código de processo penal dizem claramente que não é possível que o réu se defenda de algo que não lhe foi imputado. Se tiver que imputar dois outros fatos, tem que fazer o aditamento da denúncia, ou se não, o Supremo Tribunal Federal tem que pedir para desconsiderar no julgamento.
A fala de Demóstenes, que já foi senador e teve o mandato cassado, foi marcada por um tom de descontração, com referências do defensor a uma possível prisão de Bolsonaro.
— Se o Bolsonaro precisar que eu leve cigarro para ele em qualquer lugar, eu levo, conte comigo.
Advogado de Anderson Torres nega 'omissão' no 8 de janeiro
Último a apresentar seus argumentos no primeiro dia de sessão, o advogado do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, Eumar Novacki, sustentou não haver provas que seu cliente participou de uma trama golpista.
Novacki argumentou que o seu cliente não conspirou ou relaxou o esquema de segurança no Distrito Federal no dia 8 de janeiro, quando o réu era secretário de Segurança Pública. Na ocasião, Torres integrava o governo Ibaneis Rocha e estava nos Estados Unidos de férias.
— Toda narrativa do MPF em relação a Anderson Torres parte da premissa que ele teria conspirado, teria participado de uma macabra trama golpista e deliberadamente se ausentado do DF (no 8 de janeiro), mas isso não é a verdade — disse o advogado.
Segundo o advogado, a viagem aos EUA estava programada com meses de antecedência e era de conhecimento do então governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha.
O que está em discussão?
Enquanto tenta manter a influência sobre os rumos da direita para o pleito de 2026, Bolsonaro atua na via processual apostando em uma divergência na Primeira Turma da Corte que possa reduzir a pena de prisão, caso condenado, e tentando minar a delação premiada do seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, usada como prova relevante da investigação. O ex-presidente não compareceu ao STF por questões de saúde, como informou o advogado Celso Vilardi. A Corte teve segurança reforçada nesta terça-feira.
O único dos réus a comparecer presencialmente ao STF nesta terça-feira foi o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, que apareceu de tipoia no braço. A lesão, segundo contou a jornalistas, foi adquirida durante uma partida de tênis de mesa com o neto.
Link com provas
Para evitar que o julgamento vire alvo de disputas políticas e se prolongue até o ano eleitoral, o STF se organizou para concluir as sessões em até duas semanas. Entre a apresentação da acusação pela PGR, em fevereiro, e o início do julgamento na Corte, 196 dias terão se passado. É um intervalo 11 vezes mais rápido do que o do processo mais célebre do STF, o do mensalão, que tinha 38 réus. Em um esforço para evitar pedidos de vista, o que poderia empurrar o desfecho do caso para 2026, o gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator da ação da trama golpista, enviou aos demais integrantes da Primeira Turma um link com documentos, vídeos e áudios que compõem as provas do processo
O ex-presidente e outros réus traçaram um plano para tentar reduzir a punição em caso de condenação. Eles defendem que haja a “absorção de crimes” entre duas imputações: abolição violenta do Estado Democrático de Direito e a tentativa de golpe de Estado — o grupo é acusado também de organização criminosa armada, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado a bens da União. Somadas, as penas atribuídas a Bolsonaro podem chegar a 43 anos de prisão.
O ministro Luiz Fux vem sinalizando em outros processos que pode ser favorável ao exame conjunto desses dois crimes. Ele tem votado dessa forma em casos do 8 de Janeiro.
Caso sejam condenados, Bolsonaro e os demais réus poderão apresentar na própria Primeira Turma os chamados embargos de declaração, tipo de recurso utilizado para esclarecer pontos de uma decisão. Esse instrumento não costuma reverter o resultado de um julgamento.
A depender do placar do julgamento, pode ocorrer uma segunda possibilidade de recurso, os embargos infringentes, que levariam a discussão para o plenário do STF. Eles só podem ser apresentados, no entanto, quando ocorrem dois votos pela absolvição do réu, o que é visto por aliados de Bolsonaro como cenário improvável de se concretizar.
Delação de Cid
Outro ponto que será debatido é a delação de Cid. Alguns réus, incluindo Bolsonaro, tentam anular o acordo, enquanto a PGR pede uma redução mínima da pena, por considerar que os depoimentos do militar foram “superficiais e pouco elucidativos”. A delação do tenente-coronel teve reviravoltas, incluindo uma prisão durante um depoimento e a ameaça de nova detenção após omissões, ponto explorado pelas defesas.
A origem da trama golpista está em Cid. A investigação que levou ao julgamento foi aberta pela Polícia Federal em 2023, a partir de elementos encontrados no celular do tenente-coronel, e ganhou força com a delação. Depois, novas provas surgiram, como a descoberta de que Bolsonaro apresentou aos comandantes das Forças Armadas um plano para reverter a derrota eleitoral, o que foi rechaçado.
— O julgamento dá um limite do que é tolerável no pacto constitucional. Negar o resultado das urnas e incitar a população, pela produção de informações falsas, não é compatível com a democracia constitucional liberal. E a eventual responsabilização dos militares dá um recado para as Forças Armadas de que a tentativa de golpe de Estado tem um custo — analisa o professor da FGV Rubens Glezer, um dos coordenadores do centro de pesquisa Supremo em Pauta.