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STF: entre o regimento interno e a Constituição

Por Diogo L. Machado de MeloHamilton Dias de SouzaHumberto Bergmann ÁvilaJosé Horácio Halfeld Rezende RibeiroMiguel Reale Júnior e Renato de Mello Jorge Silveira / O ESTADÃO DE SP

 

A separação dos Poderes é fundamento do constitucionalismo moderno, concebido como instrumento de limitação do poder estatal e de salvaguarda da liberdade política.

A Constituição de 1988 consagrou, com equilíbrio, a independência e a harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário, atribuindo a cada um competências próprias e funções atípicas específicas.

 

Observa-se, no entanto, crescente atuação normativa do Supremo Tribunal Federal (STF). Não só por meio da integração de princípios constitucionais, que já suscitam problemas pontuais, mas, sobretudo, por uma compreensão ampliada do papel do seu regimento interno, especialmente quanto à possibilidade de adentrar em matéria processual. Esse protagonismo suscita preocupação quanto aos limites dessa atuação à luz da separação dos Poderes e das competências legislativas reservadas ao Congresso Nacional.

 

O artigo 96, inciso I, “a” da Constituição federal atribui aos tribunais do País competência privativa para dispor, por meio de seus regimentos, sobre sua organização e funcionamento. Essa prerrogativa sempre foi compreendida como limitada aos aspectos internos da vida judiciária, voltados ao bom desempenho institucional, sem se estender à criação de normas processuais gerais. Até porque a Constituição é clara ao estabelecer, no artigo 22, inciso I, que compete privativamente à União legislar sobre direito processual.

 

O artigo 96, inciso I, “a” da Constituição não trata de uma competência específica do STF. Refere-se à elaboração de regimentos de todos os tribunais do País. Admitir a ampliação da atuação normativa com base nesse dispositivo equivaleria a aceitar que cada tribunal possa ser regido por normas processuais próprias, o que seria inaceitável.

 

Contudo, os limites desse dispositivo vêm sendo distorcidos por interpretações que ampliam o alcance do regimento interno, transformando-o em instrumento normativo de largo espectro. Tem-se adotado interpretação elástica, atribuindo ao regimento caráter de norma especial, apta a coexistir e, em certos casos, a sobrepor-se à legislação processual comum.

 

Tal compreensão contraria a jurisprudência histórica da Corte, que sempre afirmou que o exame das matérias sujeitas ao regimento não envolve questão de hierarquia ou especialidade, mas de campos distintos de regulação (ADI 1.105-MC, relator ministro Paulo Brossard). Sem decisão prévia para redefinir a delimitação entre as esferas de competência dos regimentos e da lei processual, o STF passou, na prática, a ampliar o que seria admissível em matéria regimental.

 

Há vários exemplos dessa distorção. Como já decantado por muitos, a instauração do inquérito 4.781 com base no artigo 43 do Regimento Interno do STF é paradigmática. Destinado inicialmente a apurar ofensas dirigidas à Corte, o inquérito ampliou-se em escopo e duração, assumindo contornos difusos e alheios às garantias típicas do processo penal democrático. A norma regimental que lhe deu origem – voltada a proteger o funcionamento da Corte – foi interpretada para legitimar investigações genéricas e de objeto indefinido, em flagrante descompasso com o modelo acusatório previsto na Constituição.

 

Outros desdobramentos também merecem reflexão. Como já discutimos no Estadão (STF: monocratismo e o dever de colegialidade, 16/3, A8), outro ponto recorrente de crítica é o uso reiterado de decisões monocráticas, muitas em matérias de repercussão nacional. Tal prática, além de comprometer o princípio da colegialidade – fundante da legitimidade das decisões judiciais –, concentra excessivo poder individual nos ministros, contrariando o desenho constitucional de deliberação plural. Ademais, as regras do Código de Processo Civil de 2015, que densificam as garantias do devido processo legal e do contraditório, têm sido apequenadas em razão de interpretação abrangente das atribuições do relator previstas no artigo 21, incisos IV e V, do regimento.

 

Não menos grave é a negativa, com respaldo em norma regimental, de sustentações orais em agravos interpostos em habeas corpus, prática que afronta o estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e compromete o pleno exercício do direito de defesa. Também aqui o regimento é utilizado como fonte de limitação a prerrogativas legalmente asseguradas, gerando fricções normativas e insegurança quanto aos direitos dos jurisdicionados.

 

Tais exemplos revelam que a expansão da força normativa do regimento interno gera desequilíbrios no sistema de freios e contrapesos. Um regime fundado em liberdades públicas pressupõe que nenhuma instituição exerça suas funções de modo incontrastável. O controle recíproco entre Poderes, essência do Estado Democrático de Direito, exige transparência, responsabilidade e respeito às competências mutuamente atribuídas.

Esse não é o único desafio a ser enfrentado. Mas, ao adotar interpretação autônoma e extensiva de seu regimento interno, o STF tem comprometido a dinâmica de contenção entre os Poderes que a Constituição estrutura. Em última análise, a hipertrofia normativa do STF enfraquece o alicerce da separação institucional e desafia a legitimidade das estruturas democráticas.

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ADVOGADOS, SÃO MEMBROS DA COMISSÃO DE ESTUDOS SOBRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO (IASP)

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