Regra para presentes a autoridades não pode depender do bom senso
Por Editorial / O GLOBO
Se prevalecesse o bom senso, não seriam necessárias regras para regular o destino de presentes valiosos recebidos por autoridades. É evidente que a intenção não é presentear o indivíduo, mas sim o cargo que ele ocupa. Portanto joias e outros objetos de valor deveriam se destinar ao patrimônio público. Não foi essa, porém, a decisão tomada na semana passada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) num caso envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O tribunal determinou que Lula não será obrigado a devolver um relógio de ouro e prata avaliado em R$ 60 mil, recebido em 2005 nas comemorações em Paris do Ano do Brasil na França.
A decisão chamou a atenção por contrastar com o que o próprio TCU estabelecera no ano passado ao julgar o caso de joias e presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro dos governos da Arábia Saudita e de outros países. Por unanimidade, o plenário do tribunal determinou que ele devolvesse os presentes, alguns dos quais haviam sido postos à venda no exterior.
A decisão do TCU mobilizou o entorno de Bolsonaro a tentar recomprar relógios e outras joias vendidos nos Estados Unidos. O episódio levou a Polícia Federal (PF) a indiciá-lo por peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro, em inquérito que tramita no Supremo sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes. Agora a defesa de Bolsonaro não perdeu a oportunidade de pedir tratamento idêntico ao dado pelo TCU ao relógio de Lula — e deverá usar a decisão para tentar deter as investigações.
No entender do TCU, porém, os casos são distintos. A decisão sobre Bolsonaro se baseou num acórdão emitido pelo tribunal em 2016 estabelecendo normas para o recebimento de presentes por autoridade. Elas lhes reservam o direito a manter apenas bens considerados “personalíssimos”. Em seu voto, o relator do processo, ministro Antonio Anastasia, argumentou que a regra não poderia retroagir a 2005, ano em que Lula ganhou o relógio. No final, prevaleceu a interpretação do ministro Jorge Oliveira, segundo a qual a legislação não estipula um critério para distinguir os bens de caráter “personalíssimo”, e não cabe ao TCU estipulá-lo, mas sim ao Congresso.
Num país em que é comum a confusão entre as esferas pública e privada, é preciso haver regras objetivas para que tais situações não estejam sujeitas a interpretações convenientes aos poderosos da ocasião. Se a regra do TCU não se mostra objetiva na prática, é preciso torná-la mais clara, e o Congresso faria bem aprovando legislação que dirimisse a questão. Não pode haver a percepção de tratamento diferente no que se refere a presentes recebidos pela Presidência. É arriscado apostar no bom senso das autoridades.