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Ministério Público e ativistas criticam contratos de eólicas e solares no Nordeste

Alex SabinoZanone Fraissat / folha de sp

 

 

José Lopes Galvão pede para ser chamado de Zé de Elias no jeito nordestino de designar que se chama José e é filho de Elias. A terra em que vive, ao lado do Assentamento Acauã, em Santana do Matos, Rio Grande do Norte, era de seus avós.

O tempo todo, 24 horas por dia, vê e escuta um aerogerador ao lado de sua casa. Ele assinou contrato e arrendou a propriedade para o Complexo Eólico Acauã.

"Assinei na besteira. Estou arrependido. Nem sei direito quanto vou receber. Eles não me falaram, não", afirma, sentindo-se pior ainda com a lembrança da promessa de que embolsaria "muito dinheiro" com aquele acordo.

O rendimento até agora tem sido de R$ 300 por mês. Considera um valor "ridículo". Mais ainda quando cita o barulho que o aerogerador faz à noite. Seu filho coloca pedaços de papel higiênico no ouvido como tentativa desesperada de conseguir dormir.

Zé de Elias é exemplo de problema que ronda o modelo de parques eólicos e solares no Nordeste brasileiro: os contratos para arrendamento de terras de pequenos agricultores. Uma queixa que movimenta associações de moradores, ONGs, sindicatos, pesquisadores e o Ministério Público Federal.

"É uma Serra Pelada dos ventos", opina Fernando Joaquim Ferreira Maia, professor de Direito da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e integrante do projeto Dom Quixote, que analisa questões da transição energética. A referência é ao garimpo a céu aberto no Pará que abriu uma corrida sem lei por metais preciosos.

"Os contratos são a mola de tudo isso. A empresa negocia diretamente com os agricultores numa desproporção, uma assimetria muito grande. O arrependimento vem depois", completa.

Esta é a palavra mais usada por especialistas e advogados ouvidos pela Folha no Nordeste, quando o assunto era os acordos que possibilitam as instalações de parques eólicos e solares: assimetria. Os documentos assinados por agricultores favoreceriam apenas uma parte.

"É quase um colonialismo", critica José Godoy Bezerra, procurador do Ministério Público Federal da Paraíba. "De um lado, há empresas com conhecimento técnico e capacidade econômica. De outro, agricultores analfabetos, com zero conhecimento sobre energia. A boa-fé contratual não existe. É um processo o tempo todo atravessado, de má-fé. Isso não é energia limpa."

O Nordeste vive expansão de parques eólicos e produz 93,6% de toda a energia proveniente de ventos usada no país.

Na instalação de um parque, primeiro há a necessidade de medir os ventos ou a capacidade fotovoltaica (dos raios do sol) do local. Isso pode levar mais de um ano. Quando a viabilidade é constatada, as empresas precisam de terras para colocar o projeto de pé.

Até a metade de 2023, o Brasil tinha 890 parques eólicos instalados em 12 estados. Desse total, 85% estão no Nordeste. O mercado já recebeu R$ 300 bilhões em investimentos. A avaliação das companhias é que até 2030 serão colocados mais R$ 175 bilhões em novos projetos. Os investimentos em usinas solares, desde 2012, foram de R$ 2,8 bilhões.

Os governadores da região estão interessadíssimos no assunto porque, além da arrecadação estadual, há o histórico de crescimento local. Levantamento da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica) aponta que o PIB (Produto Interno Bruto) das cidades que receberam parques cresceu 21% a partir da instalação e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) aumentou 20%.

Ainda segundo a entidade de classe, cada real colocado em energia eólica resulta em mais R$ 2,9 na economia local.

Pode ser uma realidade no mercado macro, mas não é reconhecida por moradores de pequenas comunidades ou agricultores afetados pelos empreendimentos.

"Quando eles [da empresa] chegam, a lavagem cerebral é grande. O tempo passa e os problemas começam. Os problemas existem e quando a choradeira fica grande, a empresa faz uma reunião e promete que vai resolver para todo mundo ficar quieto. Não querem divulgação. A maioria das reclamações é quando acontece atraso de pagamento", afirma Geraldo (nome fictício), morador de Junco do Seridó, na Paraíba, e arrendatário de terra para o Parque Eólico Serra do Seridó.

É algo repetido para a reportagem. Cada vez que acontece uma queixa pública, um funcionário do parque vai à comunidade garantir que haverá soluções e pedir que aquilo não se repita. Nem sempre as promessas foram cumpridas.

"No dia seguinte alguém vem até a minha casa, pergunta por que falei mal da empresa e que não posso fazer isso", disse uma moradora do seridó paraibano que pede para não ter o nome divulgado.

Os contratos de arrendamento de terras são longos. Variam entre 30 e 50 anos. Valem para os herdeiros, caso o proprietário morra no decorrer do acordo. Há questionamentos quanto à perda do uso da terra pelo agricultor porque a companhia vai determinar que áreas utilizará da propriedade e que trechos serão liberados para cultivo.

Existem também as queixas quanto à tal assimetria, a renovação automática, a possibilidade de desistência apenas pela empresa e, principalmente, o valor pago.

"Esse é um ponto muito sensível. Há casos de R$ 300 anuais. São R$ 25 mensais na primeira fase de instalação. Isso pode levar dois ou três anos. Há a restrição ao uso da terra. Só pode plantar e construir o que a empresa permite. Você é o dono da terra, mas perde autonomia. No Ceará, foi colocada [aos agricultores] a proibição de cavar o solo", relata o advogado Rárisson Sampaio, especialista em energia e professor da UFPB.

A mudança de patamar de remuneração acontece apenas quando a energia começa a ser negociada no mercado. Zé de Elias alega que o aerogerador em sua propriedade está em funcionamento há mais de um ano, mas ele continua a receber R$ 300 mensais.

"O retorno para o agricultor é de 1,5% do que é vendido, mas isso é um valor global do parque. Será dividido de acordo com os aerogeradores que estão em cada propriedade. E é o que a empresa diz que vendeu. Não há aferição", ressalta o procurador Godoy.

O Ministério Público fez solicitação ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ao governo paraibano, no ano passado, para fiscalizar os contratos.

"Nossa visão é mais no macro. As ações que apareceram até agora contra as empresas são iniciativas individuais, não algo coletivo. Até porque os contratos são entre privados", completa Godoy, expondo o maior problema para quem reclama da forma como foram feitos os contratos: são acordos entre empresas privadas e indivíduos.

A assessoria do Incra informa ter publicado Instrução Normativa 112, em dezembro de 2021, para regulamentar a anuência do uso de terras de assentamentos para investimentos de energia. Esta apresenta todos os documentos, outorgas e licenciamentos necessários para autorização do projeto. Mas nem todas as terras usadas para parques eólicos ou solares são espaços usados para assentamentos da reforma agrária.

Existe também a possibilidade de o agricultor arrendar a sua terra mas, por decisão da empresa, esta não receber nenhum aerogerador. Neste caso, durante todo o contrato, ele receberá o valor equivalente ao pago durante a construção.

"O avanço de energias renováveis de fonte eólica e solar no Nordeste brasileiro, com seus múltiplos e invisibilizados impactos sobre as comunidades, é mais uma faceta do que chamamos de racismo. Reproduz a exclusão de populações diretamente afetadas pelos empreendimentos. Verifica-se uma sobreposição de interesses econômicos privados em detrimento do bem-estar de comunidades no âmbito da exploração de energias renováveis no Brasil", diz relatório do Inesc, ONG que trata de políticas públicas e direitos humanos, publicado no ano passado.

Os relatos ouvidos pela Folha, em diferentes regiões da Paraíba e do Rio Grande do Norte, têm alguns pontos em comum. O principal é a abordagem. No início, era um representante da companhia, engravatado, que fazia promessas de prosperidade e de uma renda que garantiria o futuro da família. O pedido era quase sempre para manter o contrato em sigilo após assinado. O documento não poderia ser levado para vizinhos, sindicatos ou associações de moradores.

Quando a estratégia ficou muito conhecida, os elos passaram a ser líderes comunitários encarregados de falar bem dos parques. Nos últimos tempos, a pressão passou a ser de governos municipais, interessados também na arrecadação do ISS (Imposto sobre Serviços).

Uma agricultora que se recusou a assinar disse que um dos argumentos para tentar convencê-la foi a obrigatoriedade de concordar porque seria pelo bem da humanidade.

"As empresas usam também os contratos como banco de terras. Arrendam bem mais do que vão usar agora porque no futuro já têm o espaço garantido e evitam a concorrência", analisa o advogado Claudionor Vital, 55, sócio da Centrac, Centro de Ação Cultural da Paraíba, que atua no semiárido do estado.

Ele também critica que as companhias avaliam quanto querem pagar pelas terras sem levar em conta o valor agregado mais importante: o vento ou o sol.

Questionado pela reportagem, o Governo da Paraíba, por meio da Sudema (Superintendência de Administração do Meio Ambiente), disse que os contratos entre empresas de parques eólicos e solares e pequenos agricultores são firmados entre particulares e o Estado não tem poder para interferir.

O Governo do Rio Grande do Norte declara atuar em "várias frentes com articulação multidisciplinar para mitigar os eventuais impactos dessas atividades" para que a transição energética ocorra da maneira mais justa possível.

A Abeeólica informa liderar um grupo de trabalho há dois anos para discutir e compartilhar boas práticas "e facilitar ações para solucionar as questões apontadas por comunidades vizinhas aos parques." A entidade considera que as queixas são "minoria em relação ao número de parques no país" e que as empresas cumprem a legislação vigente, "inclusive como forma de segurança jurídica e financeira quanto aos altos investimentos feitos nos empreendimentos."

A Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) declara que a implantação de grandes usinas solares no Brasil atende a rigorosos requisitos legais e que são realizadas interações com as comunidades dos territórios e com os gestores públicos. Segundo a associação, os associados são incentivados a atuar nos mais elevados padrões internacionais que considerem que as "tratativas locais sejam justas e transparentes."

Responsável pelo complexo eólico Acauã, no Rio Grande do Norte, a Aliança Energia afirma que os contratos de arrendamento foram negociados com os proprietários das terras, que nenhum possui cláusula restringindo direito de associação ou representação jurídica. "A base de remuneração, após a entrada em operação do parque, é o percentual da receita e a área do imóvel", diz a empresa.

Operadora do Parque Eólico Serra do Seridó, a EDP diz que seus projetos "atendem todas as exigências dos órgãos reguladores e ambientais, garantindo a conformidade com as normas vigentes." Segundo a companhia, durante a fase pré-operacional, a área continua disponível para uso dos proprietários, enquanto são conduzidos estudos técnicos necessários. "Ao longo da operação do parque eólico, mantemos uma convivência harmoniosa com as atividades agropecuárias (…) respeitando os requisitos de segurança inerentes à natureza do empreendimento de geração de energia elétrica", completa.

Consulado pela reportagem, o Ministério das Minas e Energia não respondeu até a publicação desse texto.

"Sabe qual foi o benefício que ficou para a gente? Nenhum. O legado foi dos impactos. Ficou a zoada", constata, melancólico José Antoniel de Lima, 37, presidente da Associação Assentamento Acauã, no Rio Grande do Norte.

"Zoada" é o barulho que os aerogeradores fazem dia e noite.

AGRICULTOR E A EOLICA

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