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OS LIMITES DO JUDICIÁRIO

Por Hugo Nigro Mazzilli / ADVOGADO / O ESTADÃO

 

Pode o Poder Judiciário alterar ou impor políticas públicas no País?

Por meio dos chamados litígios estruturais, essa questão já tem sido enfrentada pelos tribunais. O objetivo desses processos é obter uma reforma estrutural num ente ou instituição para restabelecer um direito fundamental e implantar ou corrigir uma política pública, como nos litígios decorrentes de grandes danos ecológicos (por exemplo, o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais).

De um lado, os reparos ambientais de enorme vulto e extrema complexidade desafiam as regras do processo civil tradicional, mas, de outro lado, despertam a dúvida: como poderia o Judiciário impor ao Estado providências fora das políticas públicas em vigor ou, mais ainda, fora dos limites orçamentários?

Pode ou não o juiz se imiscuir nessas questões? Investido para aplicar a Constituição e as leis, o juiz tem ou não legitimidade para criar ou alterar, do jeito que bem queira, as políticas públicas do País?

Os chamados litígios estruturais podem e devem, sim, ser ajuizados, desde que neles se encontrem justos limites, pois não cabe ao Judiciário administrar no lugar do administrador nem legislar no lugar do legislador. Identificando-se omissão ou desvio do ente público em tema de direitos fundamentais de caráter social, admite-se seja determinada a correção ou a implantação de políticas públicas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exigido três requisitos para viabilizar a incursão judicial no campo dos litígios estruturais (RE n.º 440.028-SP):

  • a política pública reclamada deve ter natureza constitucional;
  • é necessária correlação entre a política pública reclamada e os direitos fundamentais; e
  • deve-se provar a omissão ou a prestação deficiente pela administração pública sem justificativa razoável.

Embora se devam flexibilizar os rigores processuais nos litígios estruturais e valorizar soluções consensuais com a participação das comunidades lesadas, em primeiro lugar o juiz tem de ater-se ao que foi pedido pelas partes, não podendo decidir fora daí.

Além disso, é preciso dizer que, por piores que sejam os membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo – e muitas vezes o são –, o povo, titular da soberania, pode questionar suas políticas públicas e pô-los na rua de quatro em quatro anos. Mas, no tocante aos juízes, tudo o que se faça contra eles ou suas decisões depende deles mesmos. Por isso, o impeachment de membros do Judiciário é mais teoria do que prática, e, por sua vez, o controle do Conselho Nacional de Justiça tem caráter apenas administrativo, e não jurisdicional.

Não podemos deixar de impor limites à atuação do Judiciário, pois é o Poder menos democrático e menos sujeito a controle que temos, e já tem dado mostras de que, quando quer desviar-se, desvia-se sem emenda, como nossa maior Corte quando julga fora dos limites de sua competência constitucional.

É possível usar o processo estrutural para questionar políticas públicas, sim, mas com cuidados e limites, pois não se pode dar carta branca ao Judiciário, haja vista que, num suposto papel proativo, ele já vem tomando liberdades inaceitáveis, como no inquérito das fake news, que corre há anos, de ofício e sob sigilo (inquérito n.º 4.781/19-STF); está investigando diretamente, processando e mandando prender mesmo pessoas não sujeitas a foro constitucional por prerrogativa de função; está admitindo acordos de colaboração premiada tomados por órgãos outros que não o titular privativo da ação penal pública; está cassando decisão de indulto que a Constituição pôs na competência exclusiva do chefe do Executivo; fora dos casos autorizados pela Constituição, está criando normas abstratas que são verdadeiras leis materiais. Viola-se, assim, a separação de Poderes, descura-se a investidura democrática e põe-se a perder a imparcialidade dos magistrados e a segurança do sistema.

Em nosso sistema republicano, em tese todos os Poderes deveriam controlar-se reciprocamente, mas na prática o Judiciário controla os demais e não é por eles efetivamente controlado, pois, embora em teoria possível, jamais tivemos impeachment de magistrados do mais alto tribunal.

Não basta dizer que o processo estrutural é realidade com a qual temos de conviver e, com isso, tacitamente aceitar que o Judiciário faça o que bem queira, impondo ou alterando políticas públicas a seu talante. Não se trata apenas de questão acadêmica discutir a separação de Poderes. Basta ver as sucessivas decisões judiciais que invadem o campo da discricionariedade administrativa – e aqui, por óbvio, não estou falando das legítimas decisões que cassam atos administrativos ilegais. Estou falando, sim, do erro em substituir o juízo de conveniência do administrador pelo do juiz, em matérias que a Constituição e as leis deram discricionariedade ao administrador, que foi eleito para tomar essas decisões.

Não podemos aceitar um Judiciário como Poder deslegitimado e incontrolável, o que não se coaduna com os princípios democráticos e republicanos.

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