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Por que criminalizamos a necessidade e punimos os necessitados?

Por  e  / CONSULTOR JURIDICO

 

Uma mulher trabalhadora, diarista, esposa e mãe de uma criança de cinco anos foi presa pelo furto de água. A conduta que ensejou a reprovabilidade criminal se deu pelo fato de que tanto ela quanto o esposo romperam o lacre da instalação de água do local onde a família vivia de favor. A água objeto do furto seria para consumo próprio: para beber, tomar banho e cozinhar para o seu filho pequeno. Esse furto foi o suficiente para mover o sistema de Justiça Criminal e prendê-la por mais de cem dias.

 

Esse fato, somado a tantos outros de natureza parecida, vem ganhando holofotes graças ao trabalho hercúleo da Defensoria Pública, que inevitavelmente nos levam ao questionamento: em que consiste a criminalização da necessidade? Quem ganha com isso, afinal? Por que alguém deveria ser tratado como um animal e submetido à prisão brasileira por ter tentado matar a sede? Pensando bem, será mesmo que um animal seria tratado com tamanha indiferença caso tentasse usar a mesma água que criminalizou essa mulher? Os tempos mudaram: no Brasil, a regra é bicho solto e gente presa. Aqui a dignidade do homem não vale a do cão.

Sobral Pinto, que talvez tenha sido o maior de todos os advogados criminalistas do Brasil, ao trabalhar o "caso Harry Berger", no auge da ditadura militar de 64, fez uso da lei de proteção dos animais para lembrar-nos que até os animais têm direitos. Hoje, mais de 30 anos depois da ditadura militar, ainda prendemos pessoas e as submetemos a situações que as reduzem à condição de bicho. A ditadura acabou pra quem, afinal? Enfim...

Analisando o problema não pelo tratamento óbvio que o Direito Penal daria à questão — pois este somente faz sentido enquanto limitação à violência do Estado —, fazemos lembrar que o fundamento dos direitos humanos não é outro senão a dignidade da pessoa humana, que pode ser traduzida e interpretada à luz do que John Finnis chamou de bens humanos básicos.

 

Os bens humanos básicos funcionam como uma exigência da razão prática, pois são bens necessários para o florescimento do homem enquanto pessoa — e possuem relação com a própria natureza humana. Um dos exemplos de bens humanos básicos para Finnis é a vida corporal e os componentes de sua plenitude, como a saúde, o vigor, a segurança etc.

Uma lei que proíba ou imponha barreiras ao bom funcionamento de algum bem humano básico é uma lei essencialmente injusta, pois o fundamento da dignidade humana consiste na efetiva promoção desses bens, e não em sua violação. Do mesmo modo, uma normativa, como uma denúncia, uma acusação e uma sentença que vão no mesmo sentido são, por si só, ilegítimas do ponto de vista da razoabilidade prática.

 

Assim abrimos uma nova questão: cabe ao Direito não ser razoável? A política de tolerância zero é possível numa sociedade marcada por tantas contradições de classe? A pena, que nunca cumpre o que promete, é capaz de resolver uma demanda social tão complexa quanto essa? Jean Paul-Marat, em seu famoso plano de legislação criminal, nos questiona como a punição pode ser justa em uma sociedade sem justiça distributiva. A pergunta segue sem resposta desde a revolução francesa...

 

Como podemos dizer que levamos o Direito a sério quando criminalizamos o furto de lixo e de água. Quando, afinal, deixamos de tratar o Direito como uma ferramenta de emancipação do povo e começamos a intimidar o povo pela força do Direito? Está tudo errado — e não existe luz no fim do túnel.

 

Coube, mais uma vez, a Defensoria Pública dar uma aula de ética e cidadania ao sistema de política criminal, ensinando-nos que mais vale cuidar dos necessitados do que criminalizar as necessidades. Pois, como afirmou o professor Maurício Dieter, em terra de famintos, lixo é bem jurídico. Se criminalizamos a tentativa de subsistência dos vulneráveis, somos nós o motivo da vulnerabilidade — e deve ser no mínimo incômodo pensar que tamanha desumanidade é promovida por pessoas com formação jurídica.

 

O Direito está morto. Nós o matamos e ele mereceu.

 

Referências bibliográficas
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59314206;

PINTO, Heráclito Fontoura Sobral. Toda Liberdade é Íngreme;

Marat, Jean Paul. Plano de Legislação Criminal.

 é criminalista e professor do Núcleo de Direito Penal e Criminologia do Clube Meta-Jurídico.

 é acadêmico de Direito, membro do Clube Meta-Jurídico e colunista no Neoiluminismo.

Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2021, 20h33

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