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Os juízes e os limites para a interpretação da lei

Um juiz trabalhista esteve no centro de uma recente polêmica ao fazer uma dura crítica, em artigo publicado na Conjur, a uma decisão que condenou a churrascaria Fogo de Chão a reintegrar os trabalhadores demitidos e pagar uma multa de R$ 17 milhões, em uma ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho. Em apertada síntese, o juiz criticou a postura de juízes que utilizam princípios constitucionais demasiadamente genéricos para se interpretar ou se desconsiderar a lei, com o fim de atender suas próprias convicções pessoais.

 

De certo modo, essa polêmica ilustra uma preocupação de boa parte dos juristas, de que princípios constitucionais dissociados de uma regra legal, clara e escrita, poderiam se apresentar como razões morais transvestidas de norma jurídica, capazes de serem utilizadas para defesa de um capricho, ou de uma convicção política.

 

A ideia deste texto não é defender nem refutar a crítica feita pelo referido juiz à solução dada ao caso "Ministério Público do Trabalho versus Churrascaria Fogo de Chão", mas responder à seguinte pergunta central: em um sistema de regras e princípios jurídicos, existem limites seguros para aplicação da lei?

 

Não é de hoje que a comunidade jurídica inteira, com poucas exceções, sabe que a interpretação puramente lógica-dedutiva da lei escrita pouco pode auxiliar o juiz no julgamento dos casos lhe apresentados. Afinal, a interpretação do Direito perpassa pela solução de problemas semânticos, os quais nem sempre podem ser resolvidos por meio de operações puramente lógicas, sob pena de se chegar a constatações absurdas ou de se deparar com questões racionalmente indecidíveis.

 

Temos como exemplo a ADI 4.277/DF, julgada pelo STF, em que foi questionado se a união de pessoas do mesmo sexo deveria receber o status de entidade familiar e, consequentemente, se deveria receber a mesma proteção garantida às demais famílias formadas por casais heteroafetivos. O procurador-Geral da República, autor da referida ação, sustentou a necessidade de qualificar juridicamente a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que essa união fosse pública, contínua e duradoura. Em seu pedido, buscava uma melhor interpretação do artigo 1.723 do Código Civil, que, ao regulamentar o §3º do artigo 226 da Constituição, tinha a seguinte redação: "É reconhecida como entidade familiar a união estável ­­entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

 

Embora a Constituição trouxesse um dispositivo que garantisse especial proteção à união estável, a palavra "família" ou a expressão "homem e mulher" remetiam a tradicionais instâncias religiosas e, consequentemente, traziam inúmeros questionamentos morais quanto à fixação de seus significados. Portanto, uma interpretação literal do artigo 1.723 do Código Civil permitiria chegar a uma conclusão descompassada com o que se pretende em um estado garantidor da igualdade e dignidade humana. Entretanto, não foi essa a solução dada pelo STF ao caso, posto que considerou que a Constituição também protegia casais homoafetivos e, portanto, tal condição deveria ser considerada ao se interpretar o artigo 1.723 do Código Civil.

 

A Reclamação 6.568 ED/SP, também julgada pelo STF, pode, de igual modo, ilustrar o que quero dizer. Restou decidido no curso dessa ação que os policiais civis do estado de São Paulo não teriam o direito de fazer greve, contrariando, pelo menos em tese, o texto previsto no inciso VII, do artigo 37, da Constituição. Na fundamentação do voto vencedor, o ministro Eros Grau (o mesmo que escreveu a obra "Por Que Tenho Medo dos Juízes"), concluiu que, muito embora os servidores públicos fossem, seguramente, titulares do direito de greve, a manutenção da coesão social exigiria que alguns serviços públicos fossem prestados plenamente, em sua totalidade, fato que excepcionaria tal direito aos policias civis. Destacou o ministro, em seu voto, que da Constituição seriam extraídos sentidos normativos para além da leitura comportada e esteticamente ordenada de palavra por palavra.

 

O que esses dois casos se relacionam ao debate que se pretende neste texto? Respondo. A interpretação literal da lei escrita poderia resultar em decisões judiciais incompatíveis com o estado de direito e com os objetivos de nossa República, motivo pelo qual é imperioso o reconhecimento da necessidade de se aplicar a lei a partir dos contornos pragmáticos exigidos constitucionalmente, os quais estabelecidos nos princípios e objetivos definidos na Constituição.

 

Assim, ao aplicar o Direito ao caso concreto, a principal tarefa do juiz não deveria ser apenas responder à indagação "o que significa determinada lei?", mas, sobretudo, responder "o que devemos fazer diante de determinada lei?". Afinal, o Direito lida com problemas da sociedade e por isso a interpretação jurídica não pode ser reduzida a um processo meramente mecânico, fundado exclusivamente em procedimentos silogísticos, em detrimento de uma interpretação pragmática que atenda aos objetivos estabelecidos pela Constituição. A decisão do juiz não deve ser motivada exclusivamente pela simples análise crua da letra da lei, mas deve cuidar das implicações que determinada norma ou conceito normativo produz na sociedade ou sobre quais são as razões de sua existência e sua compatibilidade com os valores e liberdades democráticas.

 

Não é que a Constituição autorize uma interpretação livre da lei ao ponto de se criar juízes descompromissados com determinados critérios legalmente estabelecidos para aplicação da norma jurídica ao caso concreto. Contudo, é óbvio que o âmbito de aplicação de um dispositivo normativo depende de seu contexto, de sua utilização, de sua finalidade e de sua possibilidade de interpretação conforme os objetivos e valores insculpidos na Constituição. Afinal, a adequação da legislação ordinária aos princípios constitucionais não é uma opção do julgador, mas uma obrigação decorrente do próprio sistema democrático de controle de freios e contrapesos, que impõe uma atuação do Poder Judiciário frente à um possível desvio constitucional no exercício da função legislativa.

 

Por fim, ressalto que a preocupação dos juristas com a garantia de integridade, previsibilidade e objetividade das decisões judiciais acha solução no princípio da autonomia semântica da lei escrita. Esse princípio informa que os textos legais têm uma estrutura sintática (gramatical) e semântica (significativa) que impõe limites à atividade interpretativa do juiz, impedindo, assim, uma total dissociação interpretativa do que no texto legal se pretende. Contudo, a dimensão pragmática da atividade interpretativa permite com que o texto crie uma autonomia significativa frente ao seu autor (legislador), conferindo, portanto, ao juiz, a possibilidade de "construir" um "bom" significado para o texto, que se compatibilize com os limites a ele impostos e com o que se pretende constitucionalmente.

 

 é mestre em Direito pela PUC/MG e juiz do Trabalho no TRT-SP.

Revista Consultor Jurídico, 28 de março de 2021, 14h21

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