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O STF, a prisão e a Constituição - O ESTADO DE SP

Eros Roberto Grau*, O Estado de S.Paulo

22 de novembro de 2019 | 03h00

Podemos falar e escrever como juízes, advogados ou cidadãos. Agora, escrevo como a relembrar voto que proferi como relator do Habeas Corpus 84.078-7, em 2009, quando eu era membro daquele tribunal lá de Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Ao me referir aos juízes, desembargadores e ministros dos nossos tribunais seguidamente me repito, lembrando um texto de Sartre a propósito da conduta do garçom que executa uma série de gestos solícitos para atender o cliente. Os garçons cumprem seu papel no café ou restaurante onde trabalham sendo gentis até mesmo com clientes que detestem.

Assim é o juiz. Cumpre o papel que a Constituição lhe atribui. Não é perpetuamente juiz. Mas enquanto juiz deve representar o papel de magistrado, nos termos da Constituição e da legalidade. Não o que é (e pensa) ao cumprir outros papéis, quais os de artesão ou jardineiro, por exemplo. Poderão então prevalecer os seus valores. Enquanto juízes, contudo, hão de se submeter à Constituição e às leis.

O que me traz a escrever este texto é o recente julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) n.ºs 43, 44 e 54, o Supremo Tribunal Federal recuperando e reafirmando o quanto decidiu em 2009, no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7.

Outro é o meu sentimento como cidadão, distinto do que dispõe a Constituição, que estabelece, no seu artigo 5.º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E o inciso LXI desse mesmo artigo 5.º, por outro lado, aplica-se não ao cumprimento de pena, mas à prisão preventiva “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.

A distinção entre ambos é evidente: o primeiro – inciso LVII – diz respeito à prisão preventiva e o segundo – inciso LXI –, ao cumprimento de pena.

Mais, o preceito estabelecido pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, não é suficiente para justificar a execução antecipada da sentença. Preceitos constitucionais não podem ser expurgados por leis ordinárias.

A circunstância de ter procedido como um “garantista” durante o tempo no qual exerci a magistratura – e não como “consequencialista”, designação hoje atribuída aos juízes praticantes de direito alternativo – me traz serenidade.

Não me cansarei de repetir que vamos à Faculdade de Direito aprender Direito e não justiça. Uma indagação de Bernd Rüthers é de todo aplicável aos nossos tribunais e juízes: pode um Estado, pode uma democracia existir sem que os juízes sejam servos da lei? A resposta é negativa, dado que a independência judicial é vinculada à sua fiel obediência ao Direito positivo.

Pequenos trechos extraídos do voto que proferi no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7, no STF, dizem o quanto desejo aqui enfatizar.

A ampla defesa não pode, em face do que dispõe a nossa Constituição, ser visualizada de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, incluídas as recursais de natureza extraordinária. A execução de sentenças após o julgamento do recurso de apelação significa restrição do direito de defesa. Uma assertiva de um meu amigo de verdade, o ministro Evandro Lins, tudo sintetiza: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.

Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não meros objetos processuais. E as singularidades de cada infração penal somente podem ser plenamente apuradas quando, nos termos do que define o artigo 5.º, inciso LVII, da nossa Constituição, transitada em julgado a condenação de seus autores.

Não fosse assim, melhor seria que os magistrados abandonassem o seu ofício e saíssem por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem os contrariasse. Cada qual com o seu porrete! Cada um por si e a Constituição contra...

A lição do profeta Isaías que se lê na Bíblia (32,15-17) basta-me por tudo: “O direito habitará no deserto e a justiça morará no vergel. O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre”.

É certo que enquanto cidadãos gozamos da liberdade de falar como quisermos, mesmo correndo o risco de afirmar o que não tem sentido. A respeito da chamada “prisão em segunda instância”, por exemplo, há até quem chame os ministros do STF de “centauros com quatro patas de cavalo”.

Essa liberdade não deveria ser excedida mesmo pelos que não frequentaram Faculdades de Direito. Leio aqui e ali afirmações inconcebíveis, tal qual a de que as regras jurídicas podem elidir os princípios jurídicos – vale dizer regras-princípio. Mais, ignorância total do fato de que nossa Constituição, como afirmei linhas acima, nos incisos LVII e LXI do seu artigo 5.º distingue a prisão preventiva do cumprimento de pena. E, sobretudo, ironias, qual a de que o Supremo Tribunal Federal solta presos que não foram condenados em última instância para beneficiar outros.

Sei bem que uns e outros desejam fazer justiça com as próprias mãos, mas não me cansarei de reafirmar que nem mesmo os juízes fazem justiça. Pois são vinculados pelo dever de aplicar as leis e a Constituição. Justiça é lá no Céu!

Permito-me, por fim, lembrar que, como dispõe o artigo 60, parágrafo 4.º, IV, da nossa Constituição, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Percebem? Somente uma nova Assembleia Constituinte poderá impor o cumprimento de sentença condenatória a partir de condenação em segunda instância!

*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DO STF

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