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Não há consenso se repasse de salário a deputado é crime, improbidade ou nada

O Ministério Público do Rio de Janeiro suspeita que os funcionários dos gabinetes de 27 deputados estaduais, incluindo os do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL), devolviam parte dos salários aos parlamentares, numa operação conhecida como “rachadinha”.

Senador eleito Flávio Bolsonaro é suspeito de receber salários de servidores.
Foto Pública / Vitor Soares

Mas não há consenso sobre o enquadramento da conduta desses deputados. Alguns especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que a apropriação dos salários dos assessores configura o delito de peculato-desvio. Outros dizem que o ato se enquadra em corrupção passiva ou concussão. Porém, há quem avalie que o repasse dos vencimentos não é crime, mas ato de improbidade administrativa. E ainda existem profissionais do Direito que creem que a medida é imoral, mas não passível de punições, uma vez que se trata de negociação entre particulares.

Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro (PSL), reclama de um procedimento de investigação criminal (PIC) aberto pelo MP do Rio contra um de seus ex-assessores na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Fabrício Queiroz. Os promotores consideram suspeitas movimentações financeiras de R$ 7 milhões de Queiroz em três anos. Ele acumulava salários da Alerj e da Polícia Militar, e recebia cerca de R$ 23 mil por mês. Os dados foram enviados ao MP pelo Coaf.

O MP-RJ acredita que os funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro – e de outros 26 deputados estaduais – podem ter devolvido seus salários aos parlamentares. O procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, afirmou que, no caso do filho do presidente, os fatos dos quais é acusado podem configurar os delitos de peculato e lavagem de dinheiro. Além disso, Gussem apontou que ele e os demais parlamentares são investigados por atos de improbidade administrativa.

ConJur perguntou a 10 profissionais do Direito – entre magistrados, advogados criminalistas, delegados e professores – se o repasse de salários de assessores para deputados configuraria crime, ato de improbidade administrativa ou conduta atípica.

Cinco deles opinaram que o ato configuraria o crime de peculato-desvio. De acordo com o artigo 312 do Código Penal, pratica este delito, sujeito à pena de 2 a 12 anos de reclusão, o funcionário público que desvia, em proveito próprio ou alheio, dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo.

Um criminalista e professor de Direito Processual Penal destaca que o Ministério Público costuma considerar que há peculato-desvio quando o deputado fica com os vencimentos de seus funcionários.

O delegado de Polícia Civil de São Paulo Lucas Neuhauser Magalhães vai nessa mesma linha. “Pode ser um peculato, porque se pode entender que, de alguma forma, ele está desviando uma verba pública em proveito próprio, uma verba que não seria relacionada às funções dele”.

Já o advogado Fernando Augusto Fernandes ressalta que, em tese, a conduta pode configurar o crime do artigo 312 do Código Penal. Contudo, ele critica a divulgação precipitada de informações no caso de Flávio Bolsonaro.

“É preciso separar os casos. O clássico caso de deputado, ou chefe de gabinete que nomeia servidor para receber parte do salário é peculato. No entanto a vulgarização de informações sem critério causa danos a servidores que tiveram relações pessoais, assim como confundem negócios de contas conjuntas de servidores com seus cônjuges que são sócios de empresas privadas sem relação com poder público. Em especial esses casos de deputados que nada receberam em suas contas. A divulgação sem critério mistura situações jurídicas distintas”.

Corrupção ou concussão
O patrimônio é um bem jurídico disponível. Em tese, isso significa que os ganhos de alguém poderiam ser doados como ele quisesse, sem que isso constituísse um ilícito criminal. Porém, o repasse de salários a deputados não é espontâneo, declara o professor de Direito Penal da PUC-RS Fabio Roberto D'Avila.

“Não é isso, todavia, o que se tem em casos como o ora narrado. Não se trata de uma doação ou disponibilização eventual e verdadeiramente ‘livre’, mas de algo sistemático, como pressuposto para a manutenção de uma dada posição, e tendo como beneficiário um funcionário público.

Nesses casos, diz o professor, pode haver o crime de concussão (artigo 316 do Código Penal, pena de 2 a 8 anos de reclusão) - quando o funcionário publico exige, para si ou para outro, em razão de sua função, uma vantagem indevida. Outra possibilidade é o delito de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal, pena de 2 a 12 anos de reclusão) – se o servidor solicita, para si ou para terceiros, uma vantagem indevida.

O delegado Lucas Magalhães também analisa que, dependendo do caso, é possível acusar os parlamentares de corrupção passiva e concussão. No caso deste último delito, isso ocorreria quando o deputado fizesse uma exigência para seu funcionário do tipo “se você não rachar comigo, não trabalha aqui”.

Improbidade administrativa
Sete dos especialistas ouvidos pela ConJur consideram que a “rachadinha” é ato de improbidade administrativa – sendo que três entendem que esse é o único enquadramento possível da conduta (outros quatro avaliam que ela também pode configurar crimes como peculato, corrupção passiva e concussão).

Um ministro do Supremo Tribunal Federal opina que o suposto repasse de salários dos funcionários a Flávio Bolsonaro é ato de improbidade administrativa, mas não delito penal, como peculato.

Da mesma forma, o advogado Davi Tangerino diz que a conduta é ato de improbidade, mas não peculato.

“A lógica do peculato-desvio é a seguinte: o sujeito tem o bem e o desvia para outro fim. Nesse caso, era o salário, e ele [assessor] devolvia para o parlamentar. Então ele recebeu o salário a justo título. Ele efetivamente tinha um emprego. Existem precedentes dos tribunais superiores dizendo que um funcionário fantasma não é peculato por si só. É improbidade. O bem desviado, que é o salário, o assessor recebeu, ainda que, substantivamente de maneira errada, mas ele foi confiado a título de salário. Então eu tenho uma certa dificuldade de enquadrar [a conduta] no peculato. Mas improbidade administrativa, pelo menos em tese, é muito tranqüilo de se enquadrar”, analisa Tangerino.

Fabio D'Avila e Lucas Magalhães ressaltam que a “rachadinha” é um ato de improbidade administrativa que importa enriquecimento ilícito – tipo previsto no artigo 9º e incisos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992).

Mais especificamente, o delegado diz que a medida se encaixa no artigo 9º, IX, da norma: “perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza”.

Magalhães acredita que a devolução de salários também pode configurar ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário. No caso, a conduta descrita no artigo 10, XI, da Lei de Improbidade Administrativa: “liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular”.

Os atos de improbidade que gerem enriquecimento ilícito são punidos com a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; ressarcimento integral do dano, quando houver; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de 8 a 10 anos; pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 anos.

Já os atos de improbidade administrativa que causem prejuízo ao erário têm as penas de ressarcimento integral do dano; perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de 5 a 8 anos; pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 5 anos.

O que marca a diferença entre ato de improbidade e peculato-desvio, de acordo com um criminalista e professor, é o retorno do dinheiro ao deputado ou a execução de algum serviço em seu benefício pessoal. Quando os salários repassados são usados para fins de atividade parlamentar do gabinete – por exemplo, na remuneração de assessores não oficiais –, e não aproveitados pessoalmente, há improbidade administrativa. Mas quando os valores são destinados pessoalmente ao parlamentar, há peculato-desvio.

Negociação entre particulares
Dois especialistas consultados pela ConJur pensam que a doação de salários a parlamentares não é nem crime nem ato de improbidade administrativa.

Um deles afirma que se trata de uma mera negociação entre particulares. A seu ver, um servidor doar seus vencimentos a alguém “pode ser a coisa mais imoral do mundo, mas crime não é”.

Outro criminalista e professor de Direito Processual Penal entende ser possível usar a tese de que o salário pertence ao funcionário. Portanto, é privado, e não público, e ele pode fazer o que quiser com a verba. Assim, não haveria crime.

Contudo, esse advogado ressalta que, se o servidor for obrigado a repassar os valores, estará configurado o peculato.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 23 de janeiro de 2019, 17h36

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