Mercado clandestino de canais de TV reúne empresários, políticos e igrejas
Tenho 16 retransmissoras e outras 16 pré-aprovadas [à venda]", diz o prefeito licenciado de Aracati e ex-deputado federal Bismarck Maia (PDT-CE) à Folha. Ele faz parte de uma rede de empresários, igrejas e políticos que compram, vendem e alugam clandestinamente canais de TV.
Brechas legais movimentam esse balcão de negócio. Hoje existem pelo menos 1.200 canais anunciados, segundo quatro operadores desse mercado que pediram para não ser identificados.
Os canais são concedidos pelo Ministério das Comunicações gratuitamente e só podem ser transferidos depois de três anos de operação.
Para obtê-los diretamente no ministério, porém, interessados têm de enfrentar fila de milhares de pedidos em andamento. Por isso, recorrem ao feirão de canais de prateleira.
Eles são chamados assim porque os titulares não constroem estações nem solicitam autorização de funcionamento para a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).
Segundo o ministério, o prazo legal para esses procedimentos é de um ano. Mas não havia na lei, até agosto, previsão para punições —como a cassação— para quem descumprisse essas exigências. Na prática, há no mercado um estoque de canais de papel.
O resultado foi a proliferação do comércio clandestino. Em cidades do interior, um canal analógico não sai por menos de R$ 100 mil, segundo pessoas envolvidas nas operações de compra e venda. Se a autorização possibilitar a migração para a tecnologia digital, passa a valer R$ 1 milhão, dizem os operadores.
Segundo o ministério, existem atualmente 9.300 canais e, deste total, 1.650 (18%) não têm autorização da Anatel. Ou seja, não cumpriram as etapas burocráticas para ir ao ar.
Nos bastidores, técnicos afirmam que esse número pode chegar a 3.000 devido a inconsistências do banco de dados. Segundo os operadores, os 1.200 canais negociados atualmente são parte desse estoque de outorgas.
Em geral, o negócio é pago no ato e acertado por contratos de gaveta. O titular só emite uma procuração para que o novo proprietário possa administrar o canal, inclusive perante órgãos do governo.
Após dois anos nesse esquema, o antigo proprietário pode solicitar ao ministério a transferência para o comprador, desde que se mantenha a programação básica original.
Na Amazônia, esse problema tem um agravante porque as retransmissoras podem produzir até 15% da programação de seu canal --cerca de 3 horas por dia. Ou seja: na prática, também são geradoras ao colocarem no ar programas de jornalismo, variedades, e até propaganda local.
Nos estados da região, existem 1.737 canais retransmissores, segundo levantamento do Peic (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Economia da Informação e da Comunicação), da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Prefeituras e fundações são as que mais têm estoques de licenças atraindo, principalmente, as igrejas --que procuram aumentar o rebanho de fiéis e encorpar doações.
Nessa lista, seguem empresários locais e políticos, ainda segundo operadores.
A expansão desse comércio também foi impulsionada a partir de 2012, quando o então ministro Paulo Bernardo implantou uma política para que todos os locais de baixa renda no país tivessem acesso aos sinais da TV aberta.
Por essa política, emissoras piratas que tinham se instalado nesses lugares ganharam a chance de sobreviver desde que se regularizassem. Um acordo com a Anatel garantiu que elas não seriam lacradas e, sim, multadas, mas somente nas localidades que possuíssem até três canais.
O governo fez um mutirão para regularizar esses canais, mas não deu conta de processar os pedidos. Em Minas Gerais, por onde começou a campanha, até hoje existem emissoras sem a licença definitiva.
Quando assumiu o cargo, em julho de 2016, a então secretária de radiodifusão do ministério, Vanda Bonna Nogueira, pretendia acabar com esse mercado, já identificado internamente pelo governo. A notícia de que estava armando a ofensiva chegou aos operadores do mercado clandestino.
Nogueira foi alvo de denúncia ao ministério pela rede Intertevê, que pertence à Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago —foi acusada de vender facilidades na concessão de outorgas de canais para fundações.
Investigada pela corregedoria do ministério e pela CGU (Controladoria-Geral da União), acabou inocentada. Em sua defesa, anexou minuta de portaria em que restringiria o número de retransmissoras para dez e daria um prazo curto para a regularização das licenças junto à Anatel.
Em agosto, o presidente Michel Temer baixou um decreto dificultando as regras para as retransmissoras. Um dos artigos concedeu quatro meses para que os canais irregulares se adequassem às novas regras, sob pena de cassação da autorização de exploração.
Segundo o ministro das Comunicações, Gilberto Kassab, os quatro meses são o prazo para a cassação —antes sem previsão legal— para quem não regularizar a situação. A nova regra valerá para todos.
"Trata-se de uma proposta robusta, envolvendo também o serviço de RTV [retransmissão]", afirmou Kassab.
REPÓRTER CONFIRMOU ESQUEMA SE PASSANDO POR COMPRADOR
Para mostrar casos concretos da venda de canais, a Folha ligou para o prefeito licenciado de Aracati (CE), Bismarck Maia (PDT), se fazendo passar por um comprador de uma rede religiosa interessada nas retransmissoras da Fundação Vale do Jaguaribe, registrada em nome da mulher do prefeito.
O nome da fundação é mencionado nos bastidores por operadores do mercado clandestino ouvidos pela Folha.
A Folha determina que o jornalista se identifique sempre. O Manual de Redação prevê a omissão em condições excepcionais: "quando houver risco à segurança do repórter ou quando a notícia, considerada de notório interesse público, não puder ser obtida de outra maneira".
Sem poder revelar o nome de quem passou a informação de que o prefeito negocia canais, não restou outra saída a não ser simular a negociação.
A conversa com Maia ocorreu na manhã de quinta-feira (13) e foi gravada. Na abordagem inicial, a reportagem diz ter interesse nas 14 retransmissoras do prefeito. "São 16", corrige Bismarck Maia. "Tenho uma geradora e tenho as 16 repetidoras."
A reportagem então perguntou se ele venderia só os canais, sem a programação da geradora. Maia confirmou que faria o negócio e desconversou quando o assunto mudou para preço. "Eu não tenho noção disso, não. Só as repetidoras? Tem de ver aí o interesse pra gente poder sentar e discutir [o preço]", disse.
A reportagem insistiu dizendo que no mercado informaram que ele estaria pedindo R$ 500 mil [na verdade, a informação recebida é de que ele pedia R$ 5 milhões].
"Não, não. Temos de ver isso", disse.
A reportagem disse que teria interesse em levar adiante a negociação e perguntou se haveria outros canais disponíveis. "Tem pré-aprovação para outras 16 [no ministério], mas não tenho de cabeça onde aqui [no Ceará]."
"O senhor vende instaladas ou só as outorgas?", perguntou a reportagem.
"É outorga", respondeu.
A conversa se encerrou com a promessa de se estabelecer novo contato diretamente com o pastor da igreja.
Logo depois, a Folha ligou novamente para o prefeito em seu celular para que comentasse a conversa. Foram várias chamadas sem sucesso.
O prefeito, enfim, enviou uma mensagem por aplicativo afirmando que não faz parte da diretoria, conselho ou da administração [da Fundação Vale do Jaguaribe].
"Quis apenas ser cortês num momento em que estava repleta minha agenda, querendo encerrar o assunto, sem interesse para mim", escreveu.
A Fundação Vale do Jaguaribe está registrada na Receita Federal em nome da mulher do prefeito, como presidente, e de seus dois filhos, como diretores. O mais velho, Eduardo Bismarck, disputa as eleições para deputado federal pelo PDT. Seu pai se licenciou do cargo para acompanhá-lo na campanha.
A legislação proíbe que políticos tenham emissoras de rádio e TV. Para burlar a regra criam empresas em nome de laranjas.
Consultada, Glaucia Bismarck não respondeu até sábado (15).
VEJA COMO FUNCIONA O ESQUEMA:
Passo 1
Ministério das Comunicações concede a instalação de retransmissora de TV, gratuitamente, desde que esteja associada a uma geradora (emissora que produz programação)
Passo 2
Em até um ano, o dono da retransmissora tem de investir até R$ 70 mil para instalar a estação e solicitar à Anatel o direito de uso das frequências (por onde vai trocar sinal com a geradora)
Passo 3
Sem fiscalização, o dono da retransmissora não instala as estações, nem solicita frequências à Anatel e começa a negociar com políticos, igrejas ou empresários o arrendamento ou a venda do canal por meio de contratos de gaveta, o que é proibido
Passo 4
Instalada a retransmissora, o vendedor pode solicitar a troca da geradora ao ministério. Dois anos depois, o comprador pode ser legalizado como proprietário
POR QUE COMPRAR NO MERCADO CLANDESTINO EM VEZ DE SOLICITAR AO GOVERNO A CONCESSÃO?
Hoje, há uma fila de 65 mil pedidos de concessões de canais em tramitação no Ministério das Comunicações