Partidos precisam ser preservados, mas têm de explicar desvios, diz André Singer
O cientista político André Singer pôs o ponto final em seu novo livro em março e terminou de rever as provas da gráfica dias antes da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 7 de abril. O episódio virou uma nota de rodapé, mas é impossível ler o volume sem tê-lo em mente.
Professor da Universidade de São Paulo e colunista da Folha, ele conclui que a ex-presidente perdeu o mandato porque contrariou interesses de dois aliados que Lula tinha conquistado —os bancos e o MDB— e superestimou as suas chances ao enfrentá-los.
Singer não arrisca previsões para a eleição presidencial de outubro, mas vê sinais de recuperação da força do PT e aposta que Lula continuará exercendo enorme influência mesmo preso em Curitiba.
Para ele, a sobrevivência dos três partidos que dominaram a política brasileira desde o fim da ditadura militar e a redemocratização —PT, PSDB e MDB— é necessária, mas depende de um acerto de contas com erros como os revelados pela Operação Lava Jato.
Como Singer diz no livro, todos se deixaram contaminar pela corrupção, mas nenhum deles explicou o que aconteceu nem anunciou o que fará para que não ocorra de novo.
As pesquisas mostram que um terço do eleitorado tem saudade do governo Lula, mas quase ninguém foi às ruas lamentar sua prisão. O que isso significa para o lulismo?
Acho que o lulismo sobreviverá, apesar do baque com a prisão do ex-presidente e seu afastamento da atividade política cotidiana. O lulismo sobreviveu ao impeachment de Dilma e aos resultados negativos das eleições municipais em 2016.
Houve nos últimos meses uma retomada, como mostra o desempenho de Lula nas pesquisas. Arriscaria dizer que parcelas do eleitorado reagiram à prisão de maneira favorável ao ex-presidente, por entendê-la como parte de um movimento seletivo.
O lulismo não é um fenômeno mobilizador. É um movimento de transformação, sem ruptura com a ordem, o que é importante para o eleitorado mais pobre. Não houve mobilização das classes populares para defender Dilma contra o impeachment, nem para impedir a prisão de Lula. Mas o lulismo terá força eleitoral.
As pesquisas mostram que o eleitorado lulista tende a se dispersar com Lula fora da disputa. Eles ficaram sem opção?
É muito difícil fazer previsões, porque a situação é inédita. Nunca houve uma liderança popular com as características de Lula e nunca tivemos uma eleição com um líder popular como ele preso. Pode ser que uma parte dos eleitores que declaram voto em Lula agora sigam uma indicação dele. Quantos? Não sei.
A ausência de Lula tornará seus apoiadores indiferentes ao processo eleitoral?
Não creio em esvaziamento da eleição. Historicamente, o processo eleitoral no Brasil é muito vivo. Mesmo sem cultura de mobilização política, as camadas populares dão muita importância para a eleição presidencial, mesmo se o processo estiver confuso como agora.
Na ausência de um líder com as características de Lula, qual a chance de outro candidato herdar seu espólio eleitoral?
O PT ainda é o partido mais enraizado do país, com a estrutura mais sólida e centralizada de todos, apesar das perdas sofridas nos últimos anos. Além disso, a preferência dos eleitores pelo PT voltou a crescer nas pesquisas.
Isso significa que o partido tem potencial eleitoral mesmo com Lula preso. É possível que parte expressiva do eleitorado siga uma indicação explícita do ex-presidente [de outro candidato], e acho que ele a fará. Quando e quem, não sei.
Seu livro argumenta que o lulismo começou a entrar em crise por causa da reação de bancos e outros grupos contrariados pela política econômica adotada por Dilma. Mas os críticos do PT afirmam que a política fracassou porque estava errada desde o início.
Até meados de 2013, os resultados da política econômica não eram ruins, e a presidente tinha índices elevados de aprovação. Havia uma ligeira retomada do crescimento, com manutenção do emprego, da renda e dos programas sociais.
Havia pressão da inflação, mas ela estava bastante controlada, no teto da meta. Pode-se dizer que a política começou a dar errado em 2014, quando os investimentos caíram. Tudo que ela fez foi com o objetivo de que houvesse mais investimento privado.
Não falta à esquerda e ao PT fazer uma autocrítica mais profunda dessa experiência, reavaliando os fundamentos da política econômica adotada?
Muitas vozes no debate econômico defendem um projeto neoliberal, e o que a ex-presidente Dilma tentou fazer foi uma política diferente. O que chamo no livro de ensaio desenvolvimentista era uma política consistente, em favor dos trabalhadores e da reindustrialização do país.
O livro expressa surpresa com o fato de os industriais se voltarem contra o governo que procurava favorecê-los, mas não fica mais fácil entender o que houve quando se constata o fracasso da política econômica, a concentração dos seus benefícios e a maneira como o governo queria interferir nos negócios das empresas?
Em suas grandes linhas, a política econômica de Dilma beneficiava a todos. Qualquer investidor se beneficia de juros mais baixos, e isso sempre foi uma reivindicação básica de todo o setor produtivo. Assim como a desvalorização do câmbio, em 2012, e a redução do custo da energia depois. Essas políticas atendiam a reivindicações do conjunto da indústria. Por isso é surpreendente que ela tenha sido depois a ponta de lança do impeachment.
É um paradoxo. Minha hipótese é que isso tem a ver com as mesmas características identificadas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na burguesia industrial em 1964, ainda que as conjunturas sejam diferentes e muita coisa tenha mudado.
Essa burguesia depende do Estado para se alavancar e alcançar os países desenvolvidos, mas ao mesmo tempo ela teme que o fortalecimento do Estado leve as camadas populares a uma situação de tal hegemonia que prejudique a dominação burguesa. Então, nessa hora ela se desloca para deter esse processo.
O que a esquerda aprendeu com os protestos de junho de 2013?
Parte da esquerda entende que foi naquele momento que o lulismo começou a se despedaçar. Outros acham que ele representou a emergência de novas forças sociais, de caráter progressista. Acho que as duas coisas aconteceram, ao mesmo tempo.
Esse movimento também criou oportunidade para setores de classe média que até então não tinham conseguido se mobilizar contra o lulismo e de repente surgiram com força extraordinária. As manifestações desses grupos foram decisivas para o impeachment mais tarde, em 2016.
Por que as ruas se voltaram contra Dilma?
Na campanha de 2014, ela mostrou que havia uma ameaça de ajuste econômico ortodoxo que colocaria a perder os avanços e era necessário impedir isso. Foi assim que se reelegeu, embora com uma vantagem pequena.
Uma vez reeleita, ela se encontrou diante de uma situação econômica bastante difícil. Dilma teria que encontrar uma saída que mantivesse a mobilização construída na campanha, mas optou pelo pior caminho ao adotar a política econômica oposta sem dar satisfação para o eleitorado.
Críticos dizem que Dilma perdeu o apoio da coalizão partidária que sustentou os governos petistas porque o PT buscou hegemonia em vez de distribuir poder aos aliados. Concorda?
Não havia dificuldade no governo Lula. Pelo contrário, o PMDB queria participar, e as queixas eram pequenas. Os problemas surgiram depois porque Dilma tomou a decisão política, de caráter republicano, de pôr algumas pessoas para fora de cargos chave.
Seu principal núcleo de ação foi exatamente a diretoria da Petrobras, mais tarde alvo da Lava Jato. Ela já tinha demitido os diretores que depois foram presos e condenados.
Uma política desse tipo provoca reações. O principal representante dos perdedores foi o ex-deputado Eduardo Cunha [MDB-RJ], que cresceu com a insatisfação e mais tarde conduziu o impeachment.
Políticos que hoje têm que prestar contas à Justiça, como aliados do presidente Michel Temer, foram preservados por Dilma, assim como o próprio PT.
Ela mexeu em setores chave, como a Petrobras, o Ministério da Saúde e o setor de energia, para conter círculos clientelistas que estavam encrustados no Estado. Não foram mudanças cosméticas, nem seletivas.
Nem todas as práticas que vieram depois à tona foram coibidas ou estancadas. Ela não mexeu na Caixa Econômica Federal, por exemplo. Não digo que ela tenha feito uma limpeza geral e absoluta, até porque isso não seria possível. Mas não foi pouco, e o que ela fez ajuda a entender o que aconteceu depois.
Não está faltando uma reflexão do PT sobre seu envolvimento com a corrupção?
Essa é uma crítica que faço a todo o sistema partidário e especificamente aos três principais partidos, PT, PSDB e MDB. Nenhum deles respondeu a contento ao que foi levantado pela Operação Lava Jato.
Ela tem um lado faccioso, mas é também republicana, e revelou ações que precisam ser esclarecidas.
É muito importante para a sociedade brasileira que esses partidos sobrevivam, mas eles precisam dar uma resposta positiva, explicar o que aconteceu e o que deve ser feito para que essas coisas não voltem a ocorrer.
O PT e o PSDB fizeram alguns movimentos no sentido de reconhecer que houve problemas. Mas nenhum deles deu explicações suficientes.
Qual será o impacto da eleição para esses partidos?
O Brasil demorou para construir esse sistema partidário, e não há democracia sem partidos políticos. Claro que podem surgir novos atores, mas os três maiores partidos são representativos e seria muito importante que sobrevivessem.
Eles são enraizados na sociedade, representam segmentos diferentes das classes sociais e têm força para sobreviver. Os três foram muito abalados pela Lava Jato e isso abre espaço para novas forças políticas. Mas eles estão lutando para sobreviver, e a sociedade tem interesse nisso.
INDICAÇÕES DE LEITURA DE SINGER
"A Democracia Impedida"
Wanderley Guilherme dos Santos (Ed. FGV, R$ 35,187 págs.)
"A Radiografia do Golpe"
Jessé Souza (LeYa, R$ 34,90,144 págs.)
"O Impeachment de Dilma"
Raimundo Rodrigues Pereira (Manifesto, R$ 50)
"A Luta Contra a Corrupção"
Deltan Dallagnol (Primeira Pessoa, R$ 39,90, 320 págs.)
"Lava Jato"
Vladimir Netto (Primeira Pessoa, R$ 49,90, 416 págs.)
Raio-x
André Singer, 60
Nascido em São Paulo, é professor de ciência política da USP e colunista da Folha, onde trabalhou de 1986 a 2001. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.