A afronta ao teto salarial
O Estado de S.Paulo
17 Agosto 2017 | 03h00
No mesmo dia em que o governo anunciou que tomará providências jurídicas para exigir que o teto salarial do funcionalismo público estabelecido pela Constituição – hoje de R$ 33,7 mil – seja cumprido pelos Três Poderes, o presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) enviou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um ofício explicando por que autorizou o pagamento de valores entre R$ 100 mil e R$ 503,9 mil a 85 juízes, em julho.
O denominador comum dos dois acontecimentos é o rombo fiscal de quase R$ 160 bilhões previsto para 2017. Como o artigo 37 da Constituição é taxativo ao determinar que “a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta e autárquica e funcional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios e dos detentores de mandato eletivo não poderão exceder o subsídio mensal em espécie dos ministros do Supremo Tribunal Federal”, o governo quer acabar com os expedientes que têm sido utilizados em diversos setores da administração pública para burlar o teto.
No Judiciário e no Ministério Público, esses expedientes – mais conhecidos como penduricalhos – envolvem o pagamento de dezenas de benefícios pecuniários, como auxílio-moradia, auxílio-creche e auxílio-transporte. No caso dos 85 juízes do TJMT, as justificativas para os fantásticos pagamentos foram que eles usam carro próprio para trabalhar, têm direito a adicional de insalubridade e atuaram simultaneamente em diferentes entrâncias. Esses pagamentos são previstos pela Lei Orgânica da Magistratura e por uma lei estadual de Mato Grosso e teriam sido autorizados pelo CNJ, disse o presidente do TJMT, desembargador Rui Ribeiro, no ofício que enviou ao órgão. Tudo legal, como se vê, mas de nenhuma moralidade. O desembargador também afirmou que, “por juízo de conhecimento e oportunidade”, decidiu pagar aos 85 juízes todos os valores de uma só vez e divulgar a decisão no Portal da Transparência, para “propiciar o bem-vindo controle social”. Assim que a divulgação foi feita, o corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, negou que o CNJ tenha autorizado os pagamentos.
Sempre agindo em causa própria, há muito os juízes classificam pagamentos como esses como “verbas indenizatórias”, o que lhes permite afirmar que elas não são salários, motivo pelo qual não podem ser levadas em conta no cálculo do teto e geralmente ficam isentos de impostos. Graças a essas decisões fantasiosas, juízes e procuradores desrespeitam a Constituição que prometeram cumprir. No Ministério Público de São Paulo, 91% de seus membros recebiam entre o teto e o dobro em 2015 e 6% ganhavam mais do que o dobro. No Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem 2 mil juízes de 1.º grau e 363 desembargadores, a média salarial, em 2015, era de R$ 45,9 mil – bem acima do teto. Os números constam da tese de doutorado defendida pela pesquisadora Luciana Cardoso na Fundação Getúlio Vargas. Ela reproduz as declarações do presidente da Corte naquele ano, reconhecendo que seus colegas de toga afrontam o teto constitucional, uma vez que os penduricalhos são “disfarce para aumentar um pouquinho seus salários, o que permite que não tenham depressão, síndrome do pânico e AVCs”.
Na tentativa de regulamentar o teto, o governo quer introduzir no Legislativo, no Judiciário e no Ministério Público a figura jurídica do “abate-teto”. Trata-se de dispositivo utilizado na programação das folhas de pagamento por algumas instâncias do Executivo que cancela automaticamente nos holerites dos servidores qualquer remuneração que exceda o limite salarial estabelecido pela Constituição. Ainda que imposição dessa medida deva sofrer fortes resistências, ela é fundamental para sanear as finanças públicas e enquadrar as castas burocráticas que não aceitam qualquer tipo de controle. Se essa medida já estivesse em vigor na Justiça, os 85 juízes de Mato Grosso não receberiam vultosos valores que a Constituição não permite.